quinta-feira, 23 de junho de 2011

Let me take you down, cause I’m going in strawberry fields…



Morangos Mofados, Caio Fernando Abreu (Contos. Editora Brasiliense; São Paulo; 6º edição; 145 páginas, 1985). Como cenas rápidas de um trailer narrando histórias em busca de um sentido para o mundo. Ao fundo, músicas (rock, blues, tango, MPB) ajudam na composição do cenário, embalado em ritmo quase cinematográfico. Imagens explodem em palavras lapidadas, manifestadas em dores, angustias, fracassos, encontros e desencontros, esperanças, enfim, milhões de sentimentos misturados, costurados em pequenas teias a formar um enorme mosaico de emoções que marcou uma época. E ainda continua a identificar gerações e gerações que se sucedem após o lançamento apoteótico da obra.








Dividida em três partes, Morangos Mofados é, sem dúvida, a composição mais conhecida de Caio Fernando Abreu. A primeira parte, intitulada “O Mofo”, narra a queda de valores, dos amores, a solidão, a fragilidade humana, a embriagues, o consumo de drogas, o desespero, o desamor, a dor na forma mais fria e crua. Escrita de forma precisa, quase cirúrgica, Caio vai nos apresentando uma série de personagens anônimos, que ao final se personifica em uma única pessoa: o autor? Ou, quem sabe, até mesmo qualquer um de nós.






O gosto amargo da derrota, cheirando a mofo, a vômito, a vodca barata, a cigarros. Uma melodia sentimentalmente melancólica ao fundo. Escuridão e desencontros. O gosto da solidão esculpida em delírios da alma. Encravada em labirintos tortuosos e escuros de forma magistral. A sensação é idêntica à saída de uma montanha-russa.












“Os Morangos”. Aqui, uma paz tranqüilizadora invade de forma mágica a alma das personagens. Como se a existência de um final feliz fosse possível e breve, ou como se a vida fosse menos pesada. O doce levemente ácido do morango fundindo na língua, mostrando um belo dia de sol após uma tempestade. Mas o doce dá espaço para a acidez, transformando pedaços de magias em mágoas e solidão. Enquanto o dente fere o vermelho brilhoso do morango, na boca permanece o gosto azedo do preconceito, do medo, dos sonhos perdidos, das utopias transformadas em contas bancárias. O enjôo natural dos abusos. Dos delírios causados pelo excesso de cocaína




Relendo Morango Mofados me descobri sublinhando frases, trechos, anotando idéias recorrentes a partir da releitura. E, com o antigo exemplar na mão, fiz um contraponto dos meus momentos atuais com os dos anos 80. Minhas anotações de então funcionam atualmente como sentinelas da memória e das emoções que a releitura do livro me provoca. E descobri que, assim como nos anos 80, Caio e seus livros ainda constituem meu repertório de referências para pensar em minha identidade. Assim como nos anos 80, o estilo de Caio Fernando Abreu ainda vai direto à medula, ao centro nervoso. O Mofo, em nove contos, ainda me deprime.. E O Morangos, em oito contos, dá um fiapo de esperança.















O primeiro conto, Diálogo, é uma conversa entre duas personagens, A e B, na qual uma pergunta insinua um comprometimento que tanto pode ser ideológico quanto afetivo, ficando pautados o medo e a insegurança de ser denunciado ou ser amado, sem abdicar do desejo de ver-se como um igual e sem a coragem de assumir-se como tal. Estes vazios prenunciados no conto de abertura, o dito e o não-dito, marcarão as personagens dos contos seguintes.














Um dos melhores contos do livro é Além do Ponto. Nele é narrada a incursão de um homem rumo ao seu amor ou ao encontro de alguém que ele julga ser o seu amor, expondo toda a sua fragilidade e o desejo de proteção oriundo de todos nós, desde que deixamos o ventre materno. A beleza deste conto é comovedora. A linguagem toma forma do fluxo de pensamento e não sabemos se a personagem é louca ou incrivelmente sincera na sua consciência do ser.














E, finalmente no conto que dá título ao livro, Caio sinaliza uma esperança: os morangos estão mofados, mas ainda assim guardam o frescor de sua essência. É como diz o próprio Caio no livro, é como se o personagem se rebelasse, libertando-se do autor e decidindo o final da obra à revelia dele.














Morangos Mofados atravessou o tempo contingente de sua criação para perpetuar-se nas dobras da memória, fertilizando o pensamento, estimulando sucessivas releituras, ato criativo de resignação da obra original. E desta forma tornou-se um clássico, um objeto da história e da reflexão do autor. O discurso de Morangos Mofados ainda me agrada e descubro, relendo a obra, mais um motivo para reler Nietzsche sem perder a esperança nos outros 
 
Morangos Mofados.
C.F.A.

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