quinta-feira, 30 de julho de 2009

Só de sacanagem


"Meu coração está aos pulos! Quantas vezes minha esperança será posta à prova? Por quantas provas terá ela que passar? Tudo isso que está aí no ar, malas, cuecas que voam entupidas de dinheiro, do meu dinheiro,que reservo duramente para educar os meninos mais pobres que eu, para cuidar gratuitamente da saúde deles e dos seus pais, esse dinheiro viaja na bagagem da impunidade e eu não posso mais.Quantas vezes, meu amigo, meu rapaz, minha confiança vai ser posta à prova? Quantas vezes minha esperança vai esperar no cais? É certo que tempos difíceis existem para aperfeiçoar o aprendiz, mas não é certo que a mentira dos maus brasileiros venha quebrar no nosso nariz.Meu coração está no escuro, a luz é simples, regada ao conselho simples de meu pai, minha mãe, minha avó e dos justos que os precederam: "Não roubarás", "Devolva o lápis do coleguinha", " Esse apontador não é seu, minha filhinha". Ao invés disso, tanta coisa nojenta e torpe tenho tido que escutar. Até habeas corpus preventivo,coisa da qual nunca tinha visto falar e sobre a qual minha pobre lógica ainda insiste: esse é o tipo de benefício que só ao culpado interessará.Pois bem, se mexeram comigo, com a velha e fiel fé do meu povo sofrido, então agora eu vou sacanear: mais honesta ainda vou ficar. Só de sacanagem! Dirão: "Deixa de ser boba, desde Cabral que aqui todo o mundo rouba" e eu vou dizer: Não importa, será esse o meu carnaval,vou confiar mais e outra vez. Eu, meu irmão, meu filho e meus amigos,vamos pagar limpo a quem a gente deve e receber limpo do nosso freguês.Com o tempo a gente consegue ser livre, ético e o escambau. Dirão: "É inútil, todo o mundo aqui é corrupto, desde o primeiro homem que veio de Portugal". Eu direi: Não admito, minha esperança é imortal. Eu repito, ouviram? IMORTAL! Sei que não dá para mudar o começo mas, se agente quiser, vai dar para mudar o final!"



Elisa Lucinda

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Para que serve uma relação?


Para que serve termos alguém com quem mantemos uma relação? A definição mais simples seria a de tornar a vida à dois mais fácil.Algumas pessoas, precisam estar ao lado de alguém somente pelo fato de não conseguirem ficar sozinhas. Outras, buscam no outro, a sua metade da laranja.Há também aquelas que mantém uma relação só para ter a sensação de que são capazes de serem amadas.Pelos filhos.Por dinheiro.Pura preguiça de tomar alguma atitude.Por doença.Fragilidade.Medo.Essas armadilhas sempre terminam em frustrações.Quando se decide ter uma relação com alguém, deveríamos apenas levar em consideração o fato mais importante que pode ter num relacionamento.Você poder ser você 100% do tempo e mesmo assim, encontrar no outro a cumplicidade esperada.Você poder estar à vontade com a pessoa.Concordar ou discordar nos assuntos.Fazer amor sem xiliques ou tabus.Sentar juntinho e poder ficar em silêncio sem que isso traga questionamentos sobre o silêncio desejado.Ir no cimena de mãos dadas.Viajar.Ouvir uma música.Ler o mesmo livro.Trocar favores.Deixar bilhetes carinhosos ou sutis para um final de noite a dois com uma garrafa de vinho.Fazer e receber elogios.Ir ao mercado e lembrar do bolo preferido ou da geléia que ela mais gosta.Amparar.Confiar.Respeitar.Dividir responsabilidades e gratificações. Quando o tempo levar embora as sensações de prazer a dois, ter o devido amor incondicional para viver apenas como bons amigos.Ajudar financeiramente.Fazer uma surpresa no dia dos namorados, escondendo uma lembrança num pode de biscoitos.Caminhar lado a lado.Levar ao médico.Fazer repreensões se necessário.Fazer a pipoca enquanto ele escolhe o filme.Enfim, ter uma relãção com alguém requer desprendimento, amor, carinho, amizade e sobretudo cumplicidade.



Vylna Cassoni

24/07/09

Casal lendo a bula do viagra


- Vai, Antônio. Toma logo. - Eu não tomo nada sem antes ler a bula. Cadê meus óculos? - Pendurados no seu pescoço. - Isso é ridículo, Maria Helena. Ridículo!!! - Então, todos os homens da sua idade são ridículos. Porque todos estão tomando! E não me puxa esse lençol, fazendo o favor. Olha aí o bololô que você me faz nas cobertas! - A humanidade conseguiu crescer e se multiplicar durante milênios sem isso. Nós dois crescemos e nos multiplicamos sem isso. Taí o Pedro Paulo, taí o Zé Augusto que não me deixam mentir. Fora aquele aborto que você fez.. - Antônio, eu não vou discutir isso com você agora.Toma logo esse negócio. - Isso aqui faz mal pro coração,sabia? Um monte de gente já morreu tentando dar uma trepadinha farmacêutica. - Foi por uma boa causa. E não faz mal coisa nenhuma. Só pra quem é cardíaco e toma remédio. Você não é cardíaco. Nem coração você tem mais. - Não começa, Maria Helena, não começa. - Pode ficar sossegado que você não vai morrer do coração por causa dessa pilulinha. Eu vi num programa do GNT um velhinho de 92 anos que toma isso todo dia. - Sério? - Preciso de sexo, Antônio. - Mas hoje é segunda, Maria Helena... - Quero trepar!!! Foder!!! Ser comida por um macho de pau duro!!! - Francamente, Maria Helena, que boca.. Parece que saiu da zona. - Quero ser penetrada, quero gozar. - O sexo é uma ditadura, Maria Helena A gente tá na idade de se livrar dela. - Saudades da dita dura. Olha só, você me fez fazer um trocadilho de merda. - Além do mais, Maria Helena, nós já tivemos um número mais do que suficiente de relações sexuais na vida, por qualquer padrão de referência, nacional ou estrangeiro. A quantidade de esperma que eu já gastei nesses anos todos com você dava pra encher a piscina aqui do prédio. - Com o esperma que você ordenhou manualmente, talvez.. O que o senhor gastou comigo não daria nem pra encher o bidê aqui de casa. Um penico, talvez. Até a metade. - Maria Helena.... - E faz quase um ano que não pinga uma gota lá dentro! - Sossega o facho, mulher. Vai fazer ioga, tai chi chuan. Já ouviu falar em feng shui, bonsai, shiatsu ? Arranja um cachorro. Quer um cachorro ? Um salsichinha? - Quero um salsichão, Antônio. Olha aí: outra piadinha infame. - É porque você está com idéia fixa nessa porcaria. - Que porcaria? - O sexo, Maria Helena, o sexo. - Sabe o que mais que deu naquele programa sobre sexo, Antônio? - Não estou interessado. - Deu que as mulheres com vida sexual ativa têm muito menos chance de ter câncer. É científico. - Come brócolis que é a mesma coisa, Maria Helena. Protege contra tudo que é câncer. Também é científico, sabia? E puxado no azeite, com alho, fica uma delícia. - A que ponto chegamos,Antônio. Eu falando de sexo e você me vem com brócolis puxado no azeite! - Com alho. - Faça-me o favor, Antônio. - Maria Helena, escuta aqui, você já tem 50 anos, minha filha, dois filhos adultos, já tirou um ovário, já... - Não fiz 50 ainda. Não vem não. E o que é que filho e ovário têm a ver com sexo? - Maria Helena, me escuta. Depois de uma certa idade as mulheres não precisam mais de sexo. - Ah, não? Quem decidiu isso? - Sexo nessa idade é pras imaturas. Pras deslumbradas, pras iludidas que não sabem envelhecer com dignidade. - Prefiro envelhecer com orgasmos ... - O que é que o Freud não diria de você, Maria Helena. ... - E de você, então, Antônio? No mínimo, que você virou gay depois de velho. Boiola. - Maria Helena! Faça-me o favor. Eu tenho que ouvir isso na minha própria casa, na minha própria cama,diante da minha própria televisão? - Aliás, gay gosta de trepar. É o que eles mais gostam de fazer. Você virou outra coisa, sei lá o quê. Um pingüim de geladeira, talvez. - Maria Helena, dá um tempo, tá? Tenho mais o que fazer. - Fazer? Essa é boa. O que é que um bancário aposentado com salário integral tem pra fazer na vida, posso saber? Ficar jogando bilhar a tarde inteira? - Sem comentários, Maria Helena, sem comentários. - Tá bom, sem comentários. Bota os óculos e lê duma vez essa bendita bula. - Só que precisa de dois óculos pra ler isso. Olha só o tamanhico da letra. Se é um negócio pra velho, deviam botar uma letra bem grande. Pelo menos isso. - Vira o foco do abajur para cá... assim... melhorou? - Abaixa essa televisão também. Não consigo me concentrar ouvindo novela. Mais. Mais um pouco. - Pronto, patrãozinho. Sem som. Vai, lê duma vez. - O princípio ativo do medicamento é o citrato de sildenafil. - Sei. - Veículos excipientes: celulose microcristalina... - Celulose vem da madeira. Pau, portanto. Bom sinal. - Onde foi parar a sua pouca educação, Maria Helena? - Vai lendo, Antônio. Depois conversamos sobre a minha pouca educação.. - Cros...camelose sádica. Croscamelose. Castrepa, Maria Helena. Me recuso a tomar um troço com esse nome. Deve ser alguma secreção de camelo. Se não for coisa pior. - Não é camelose. Num tá vendo aí? É caRmelose. Deve ser algum adoçante artificial. Pro seu pau ficar doce, meu bem. - Putz. Só rindo mesmo. A menopausa acabou com a sua lucidez, Maria Helena. - Troco toda a lucidez do mundo por um pau tinindo de tesão por mim. - Absurdo, absurdo. - Que mais, que mais, Antônio? - Dióxido de titânio. - Ah, titânio. Pro negócio ficar bem duro. - índigo carmim... - índigo? Deve ser o que dá o azul da pilulinha. - Será que esse negócio não vai deixar o meu pau azul, Maria Helena? - E daí, se deixar? Você não sai por aí exibindo o seu pênis, que eu saiba. Ou sai? - Mas, e se eu for a um mictório público? o que é que o cara ao lado não vai pensar do meu pinto azul? - Diz que você é um alienígena, ora bolas. Que o seu corpo está pouco a pouco se adaptando à Terra, que ainda faltam alguns detalhes. Ou explica que você é um nobre, de sangue e pinto azul. Ou não diz nada, ora bolas. Acaba de mijar, guarda o pinto azul e vai embora, pô. - Escuta. Agora vem a parte que explica como esse petardo funciona. - Isso. Quero ver esse petardo funcionando direitinho. - Presta atenção. 'O óxido nítrico, responsável pela ereção do pênis,ativa a enzima guanilato ciclase, que, por sua vez, induz um aumento dos níveis de monofosfato de guanosina cíclico, produzindo um relaxamento da musculatura lisa dos corpos cavernosos do pênis e permitindo assim o influxo de sangue:' Cacete. Corpos cavernosos Já pensou,Maria Helena? Corpos cavernosos sendo inundados de sangue? Puro Zé do Caixão. - Corpo cavernoso só pode ser herança do homem das cavernas. Vocês homens evoluem muito lentamente. - Pára de viajar, Maria Helena. Parece que fumou maconha. - Não era má idéia. Pra relaxar. Vou roubar do Pedro Paulo. Eu sei onde ele esconde. Podíamos fumar juntos. - Eu já tô relaxado. Tô até com sono, pra falar a verdade. - Lê, lê, lê, lê aí. Você já dormiu tudo a que tinha direito nessa vida. - Vou ler. 'Todavia, o sildenafil não exerce um efeito relaxante diretamente sobre os corpos cavernosos..:' - Não? - Não, Maria Helena. Ele apenas 'aumenta o efeito relaxante do óxido nítrico através da inibição da fosfodiesterase-5, a qual' - veja bem, Maria Helena, veja bem - 'a qual é a responsável, pela degradação do monofosfato de guanosina cíclico no corpo cavernoso?'. Ouviu isso?- Degradação, Maria Helena. Dentro dos meus próprios corpos cavernosos. Degradante.. - Degradante é pau mole. - Olha o nível, Maria Helena! Olha o nível!! Vamos ver os efeitos colaterais. Olha lá: dor de cabeça. Você sabe muito bem que se tem uma coisa que eu não suporto na vida é dor de cabeça. - Na cultura judaico-cristã é assim mesmo,Antônio. Pra cabeça de baixo gozar, a de cima tem que padecer. - Não me venha com essa sua erudição de internet, Maria Helena. Estamos off-line. - Deixa de ser criança, Antôni. Se der dor de cabeça você toma um Tylenol, reza uma ave-maria, canta o 'Hava Naguila' que passa. - Outro efeito colateral: rubor. Rá, rá. Vou ficar com cara de quê, Maria Helena? De camarão no espeto? - Se for camarão com espeto, tá ótimo. Que mais, que mais? - Enjôos. Ó céus! Enjôos... - Você sempre foi um tipo enjoado, Antônio. Ninguém vai notar a diferença. - Vamos ver o que mais... hum.. dispepsia. Que lindo. Vou trepar arrotando na sua cara. - Você me come por trás. Arrota na minha nuca. - É brincadeira... É essa a sua idéia de amor, Maria Helena? - Isso não tem nada a ver com amor, Antônio. Já disse: é profilaxia contra o câncer. E arrotar, você já arrota mesmo o dia inteiro, sem a menor cerimônia. Na mesa, na sala, em qualquer lugar. - Como se você não arrotasse, Maria Helena. - Mas não fico trombeteando os meus arrotos. Isso é coisa de machão broxa. Em vez de trepar com a esposa, fica arrotando alto pra se sentir o cara do pedaço. - Como você é simplória, Maria Helena, como você é... menor. Desculpe, mas acho que o seu cérebro anda encolhendo, sabia? Ou mofando. Ou as duas coisas. - Vai,Antônio, chega de conversa mole. E de pau idem. Pula os efeitos colaterais. - Como , 'pula os efeitos colaterais'? É porque não é você quem vai tomar essa meleca, né? Vou ler até o fim. Os efeitos colaterais são a parte mais importante. Olha lá: gases. Que é que tá rindo aí? - Do efeito cu-lateral. Desculpa. Esse foi de propósito. Não agüentei.. - Admiro seu humor refinado, Maria Helena. Torna você uma mulher tão mais sedutora, sabia? - Obrigada, Antônio.'Agora, quanto aos seus gases, pode relaxar o esfíncter, meu filho. Numa boa. Tô tão acostumada que até sinto falta quando estou sozinha. Sério. Fico pensando: Ah, se o Antônio estivesse aqui agora pra soltar uma bufa de feijoada com cerveja na minha cara... - Maria Helena, qualquer dia você vai ganhar o Oscar da vulgaridade universal. - Vou dedicar a você. - Vamos ver que mais temos aqui em matéria de efeitos colaterais. Ah! Congestão nasal. Que gracinha. Vou ficar fanho, que nem o Donald. Qüém,qüém. Qüém. - Um pateta com voz de pato. Perfeito. - Ridículo. Absurdo. Idiota. - Ridículo você já é, Antônio. E quem não é? Além do mais, é só calar a boca que você não fica fanho. - Ah, tá. E se eu quiser falar alguma coisa na hora? - Você não diz nada de interessante há mais de dez anos, Antônio. Vai dizer justo na hora de trepar? - Eu não nasci para dizer coisas interessantes a você, Maria Helena. - Já percebi. - Hum. Ouve só; diarréia! - Quê? - É outro efeito colateral dessa bomba aqui. Fala sério, Maria Helena. Isto aqui é um veneno. Não sei como eles vendem sem receita. - Deixa de ser pueril, Antônio. Magina se alguém vai ter todos os efeitos colaterais ao mesmo tempo. No máximo um ou dois. - A caganeira e os arrotos, por exemplo? Ou a ânsia de vômito e os gases? - Faz um cocozinho antes. Pra esvaziar! Agora, Antônio. Eu espero. - Eu não estou com vontade de fazer cocozinho nenhum, Maria Helena. Faça-me o favor. E olha aqui, mais um efeito colateral: visão turva. - Você bota os seus óculos de leitura. E que tanto você quer ver que já não viu? - Maria Helena, você não entendeu? Essa droga perturba seriamente a visão. Vou ficar cego por sei lá quantas horas, quantos dias. E tudo por causa de uma reles trepadinha? E se a minha visão não voltar? Vou andar de bengala branca pro resto da vida? - Pode deixar que eu guio a sua bengala, Antõnio. Olha, pensa no lado bom da cegueira: você vai poder me imaginar 20 anos mais moça. Trinta, se quiser. - Maria Helena, desisto. Não vou tomar essa porcaria e tá acabado. - Dá aqui essa cartela, Antônio. Abre a boca. Pronto. Engole. Olha a água aqui.. Isso. Que foi? Engasgou, amor?! Tosse pra lá,ô! Me borrifou toda! Que nojo! Quer que bata nas suas costas? Ai, meu Deus! Antônio? Você está bem ? Respira fundo! Isso, isso... E aí, amor? Melhorou? Morrer afogado num copo d'água ia ser idiota demais, até prum cara como você. - Arrr! E com essa pílula monstruosa entalada na garganta, ainda por cima! Ufff! Me dá mais água ... - Quanto tempo isso aí demora pra fazer efeito? - Isso aí o quê? - A pílula, Antônio, a pílula. - E eu sei lá? - Vê na bula,Antônio. - Hum... tá aqui: 30 minutos. - Ótimo. Dá tempo de ver o fim da minha novela.


Veríssimo -

sexta-feira, 24 de julho de 2009

O criado-mudo.


Tudo começou quando resolvi me mudar do décimo para o quarto andar, aqui mesmo, neste edifício da Alameda Franca. Um carrinho de supermercado seria o suficiente. Queria fazer lá embaixo um lar, já que isso aqui virou um vício. E, como todo vício, tesão! Lá no quarto andar, tem quatro apartamentos. Eu não conhecia ainda os vizinhos quando o fato se deu. Passei o dia levando coisas lá para baixo. Há dois dias faço isso, ajudado pela Cristina. Uma das últimas viagens e lá ia eu com a Cris ao lado, descendo pelo elevador. Carregávamos o criado-mudo. O criado-mudo tem uma gavetinha. Quando a porta se abriu, havia duas famílias esperando. Meus vizinhos. Pai, mãe, crianças e até uma avó. Foi quando eu estendi o braço para me apresentar como o novo vizinho que tudo aconteceu. E foi muito rápido. Muito. Quando eu tirei a mão do movelzinho para cumprimentar aqueles que agora são meus vizinhos, a gavetinha deslizou. Eu ainda tentei uma gingada com o corpo pra ver se evitava a catástrofe, mas não adiantou. A filha da puta estava indo para o chão, lisa como quiabo. Estava indo para o chão com tudo dentro. E não existe nada mais indiscreto que uma gavetinha de criado-mudo de um homem que mora sozinho. Ou mesmo que não more. Ali você vai jogando coisinhas, papéis. Coisas, enfim. Coisas que só têm um destino na vida: a gavetinha do criado-mudo. Entre a danada escapar do móvel e esparramar tudo pelo chão, não devem ter sido nem dois segundos. Mas estes dois segundos foram sofridos. Neste pedacinho de tempo tentei, em vão, me lembrar do que era que tinha lá dentro e, consequentemente, toda a vizinhança ia ver. Além da Cristina. Não deu outra. A gaveta caiu de quina e tudo voou. E voou tudo de cabeça pra cima, tudo querendo se mostrar. Ar livre. Há quanto tempo aquilo tudo não via a luz do dia, já que ficavam debaixo do abajur lilás? E não ficou tudo amontoadinho, não. O material se esparramou legal pelo hall. Diante do que vi no primeiro bater de olhos, a idéia foi pular em cima e cobrir tudo com o corpo até todo mundo sumir dali. Sim, na gavetinha do criado-mudo a gente joga tudo. Pelos meus cálculos, devia ter coisas ali dos últimos cinco anos. Que, é claro, eu não saberia dizer. Eu não tinha idéia do que é que estava indo para o chão e aos olhos da vizinhança estupefata. Um pedaço da minha vida estava ali, no chão, sujeito à visitação pública. Uma vergonha. E o pior é que não dava para pegar tudo de uma vez. Teve pilha que rolou escada abaixo. Moedinhas rodopiavam sem parar, fazendo aquele barulhinho. A primeira coisa que a Cristina recolheu foi um par de brincos douradérrimos. Que não eram dela. E eu não ia explicar ali que eu não tinha a menor idéia de quem fossem. Podiam estar ali há cinco, seis anos. As crianças olharam para três camisinhas e deram-se sorrisos cúmplices. Não foi bem este o olhar da Cris. Aquele pequeno despertador quebrou o vidro. Estava parado às 10 e 10 do dia 23, sabe-se lá de que mês ou ano. Três edições da Playboy. Velhas. Uma da Tiazinha. Constrangimento. Pra minha sorte, bem ao lado caiu a História da Filosofia, de I. Khlyabich. E o livro daquela jovem namorada do Sallinger, do Apanhador no Campo de Centeio. Amenizou um pouco. Trata-se de um masturbador de campo de pentelhos. E as camisinhas eram de 98, tava escrito lá. Limpou um pouco a barra. Um pouco. Sim, por outro lado, mostrava que desde 98 que eu... Deixa pra lá. Tinha o menu da minha aula de culinária de março. Naquele dia aprendi a fazer crepe de pancetta e brie, com a professora Bia Braga, junto com o Frei Betto, aluno também. Tinha procurado tanto o Guia de Acesso Rápido do celular. Tava lá. Agora eu ia aprender a apagar os telefones vencidos da caixa. Meu Deus, o que é aquilo no pé do garoto? Viagra! E o filho da puta pegou e mostrou para o pai, que me olhou com pena, com dó: tão jovem... Tive que dar explicaçoes: - Hehe, é o Jair, que é do 103, psicanalista, amostra grátis, aí. Tem dois... Já ia dar uma explicaçao da experiência que tinha tido com o que não estava mais ali, mas achei que os pais não iriam ouvir de bom grado, diante das crianças. Viagra é a maior sujeira, posso te garantir. Acho que não convenci ninguém. Cris, com os alheios brincos na mão, escondeu o Viagra. Vexame total. Mas isso era só o começo da minha vida esparramada no chão de mármore. - A conta da compra do computador que eu dei para a minha irmã. - Duas pilhas Duracell que jamais saberemos se estão boas ou já usadas. Esse problema de pilhas soltas me enlouquece. - Sabe aquelas moedinhas de orelhão que não funcionam mais? Várias. - Uma foto minha com a atriz Manoella Teixeira, abraçados na porta do Ritz (isso foi há dois anos, fui logo explicando). - Uma cartela de Lexotan, uma de Frontal e uma de Zoloft. Pronto, os vizinhos não teriam mais dúvidas. Um louco deprimido se aproximava. - Quatro canetas Bic que eu duvido que ainda funcionem. - Uma capinha de celular que eu comprei há uns quatro anos e não serviu. - Uma caneta dessas de marcar texto, aquela amarela, sabe? Seca, é claro. - Um tubo de Redoxon, vencido há várias gripes. - Um lápis sem ponta; aliás, dois. - Um papelzinho com um telefone que jamais saberemos de quem é. - Outro papelzinho com um telefone (procurei tanto... Agora não vai mais adiantar). - Um benjamim. - Um tubo (suspeitíssimo) de Hipoglós. - Mais uma cartelinha (quase vazia) de Frontal. - Um disquete de computador sem nada escrito nele. O que pode ter aqui? - Um par de óculos escuros que nunca foram meus. - Umas cinco ou seis chaves que nunca saberei que portas abrir. - Dois tubos de KY, que quem sabe o que é pode imaginar o meu ar de sem jeito. E o cara do 43 levava jeito de saber, pela olhadinha que deu para a esposa, que ficou vermelhinha. Ela devia gostar de KY. - Um livrinho mandado (e escrito) por um leitor, com o nome Ser Gay é Ser Alegre. Como explicar isso, de joelhos? - E, para encerrar o meu derrame, um papel em branco com um beijo de batom vermelho, bem no meio. Tentei dizer que era da minha afilhada, Maria Shirts, mas não colou. Fui recolhendo aquilo tudo, aqueles pedaços da minha vida e colocando de novo dentro da gavetinha. E me levantei. Entramos em silêncio no apartamento, eu certo de que ia começar uma nova vida ali. Mas logo cheguei à conclusão de que a gente nunca começa nada, a gente continua. Ajeitei o criado-mudo ao lado da cama. Fiquei olhando para o indiscreto móvel que eu achava mudo. Mas que, em dez segundos, contara cinco anos da minha vida.


terça-feira, 21 de julho de 2009

Propaganda fofa é assim

A Minha felicidade não é a sua


O mais recente livro de Carlos Moraes, o ótimo "Agora Deus vai te pegar lá fora", há um trecho em que uma mulher ouve a seguinte pergunta de um major: "Por que você não é feliz como todo mundo?" A que ela responde mais ou menos assim: "Como o senhor ousa dizer que não sou feliz? O que o senhor sabe do que eu digo para o meu marido depois do amor? E do que eu sinto quando ouço Vivaldi? E do que eu rio com meu filho? E por que mundos viajo quando leio Murilo Mendes? A sua felicidade, que eu respeito, não é a minha, major." E assim é. Temos a pretensão de decretar quem é feliz ou infeliz de acordo com nossa ótica particular, como se felicidade fosse algo que pudesse ser visualizado. Somos apresentados a alguém com olheiras profundas e imediatamente passamos a lamentar suas prováveis noites insones causadas por problemas tortuosos. Ou alguém faz uma queixa infantil da esposa e rapidamente decretamos que é um fracassado no amor, que seu casamento deve ser um inferno, pobre sujeito. É nestas horas que junto a ponta dos cinco dedos da mão e sacudo-a no ar, feito uma italiana indignada: mas que sabemos nós da vida dos outros, catzo? Nossos momentos felizes se dão, quase todos, na intimidade, quando ninguém está nos vendo. 0 barulho da chave da porta, de madrugada, trazendo um adolescente de volta pra casa. O cálice de vinho oferecido por uma amiga com quem acabamos de fazer as pazes. Sentar-se no cinema, sozinho, para assistir ao filme tão esperado. Depois de anos com o coração em marcha lenta, rever um ex-amor e descobrir que ainda é capaz de sentir palpitações. Os acordos secretos que temos com filhos, netos, amigos. A emoção provocada por uma frase de um livro. A felicidade de uma cura. E a infelicidade aceita como parte do jogo — ninguém é tão feliz quanto aquele que lida bem com suas precariedades. O que sei eu sobre aquele que parece radiante e aquela outra que parece à beira do suicídio? Eles podem parecer o que for e eu seguirei sem saber de nada, sem saber de onde eles extraem prazer e dor, como administram seus azedumes e seus êxtases, e muito menos por quanto anda a cotação de felicidade em suas vidas. Costumamos julgar roupas, comportamento, caráter — juizes indefectíveis que somos da vida alheia — mas é um atrevimento nos outorgar o direito de reconhecer, apenas pelas aparências, quem sofre e quem está em paz. A sua felicidade não é a minha, e a minha não é a de ninguém. Não se sabe nunca o que emociona intimamente uma pessoa, a que ela recorre para conquistar serenidade, em quais pensamentos se ampara quando quer descansar do mundo, o quanto de energia coloca no que faz, e no que ela é capaz de desfazer para manter-se sã. Toda felicidade é construída por emoções secretas. Podem até comentar sobre nós, mas nos capturar, só com a nossa permissão.



Martha Medeiros


Revista O GLOBO, 16/01/2005

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Para a minha menininha...







" Menininha do meu coração, fique pequenininha, não cresça mais não..."

Mas, ela cresceu...Cresceu no tamanho, na beleza, nas emoções que já me fez sentir e infelizmente em algumas atitudes.E, cresceu tanto que já não reconheço a menininha de outrora que estendia os bracinhos me pedindo aconchego e assim ficava até que seus olhinhos não mais estivessem molhados.Agora, na maioria dos dias ao seu lado sou menor.Ela quando quer, sabe ser a mesma menininha que vi nascer, a mesma menininha do meu coração que de manhosa se transformou em doçura até um dia desses...

PS: parte da música de Toquinho.


Meninina

Menininha do meu coração
Eu só quero você
A três palmos do chão
Menininha não cresça mais não
Fique pequenininha na minha canção
Senhorinha levada
Batendo palminha
Fingindo assustada
Do bicho-papão
Menininha, que graça é você
Uma coisinha assim
Começando a viver
Fique assim, meu amor
Sem crescer
Porque o mundo é ruim, é ruim e você
Vai sofrer de repente
Uma desilusão
Porque a vida é somente
Seu bicho-papãoFique assim, fique assim
Sempre assim
E se lembre de mim
Pelas coisas que eu dei
Também não se esqueça de mim
Quando você souber enfim
De tudo o que eu amei.

Toquinho/Vinícius.

terça-feira, 14 de julho de 2009



Solstício de Inverno
ROSAMUNDE PILCHER


Primeiro Capítulo


Antes de Elfrida Phipps deixar Londres para sempre e se mudar para o campo, ela fez uma viagem ao Lar de Cães de Battersea e voltou com um acompanhante canino. Levou uma boa e sofrida meia hora para encontrá-lo, mas assim que o viu, sentado perto da grade do canil e olhando para ela com seus olhos escuros e lânguidos, soube que era ele. Não queria um animal grande, nem lhe agradava a idéia de um cachorrinho de colo. Esse tinha o tamanho certo. Tamanho de cachorro.Tinha pêlo vasto e macio, um pouco esparramado sobre os olhos, suas orelhas espetavam ou caíam, e uma bela fofa e triunfante cauda.Era malhado irregularmente de branco e marrom. As partes marrons tinham o tom exato de chocolate ao leite. A funcionária do canil respondeu à pergunta sobre seu pedigree, dizendo que achava que ele tinha um pouco de dois tipos de collie, da fronteira e barbado, além de outras raças não identificadas. Elfrida não se importou. Gostava da expressão daquela carinha mansa.Deixou uma doação para o Lar de Cães de Battersea, e sua nova companhia partiu com ela, sentada no banco do carona no carro velho e admirando com ar satisfeito a paisagem pela janela, como se essa fosse a vida à qual gostaria de se acostumar.No dia seguinte, Elfrida o levou ao salão de poodles para uma tosa, xampu e escova. Voltou para ela fofo e limpo e cheirando a limonada. Sua reação a toda essa atenção e luxo foi uma demonstração de devoção fiel, grata e amorosa. Era um cão quieto, tímido mesmo, mas corajoso também. Se a campainha tocava ou se achava ter visto um intruso, rosnava por um momento e, então, voltava à cesta ou ao colo de Elfrida.Demorou algum tempo até que ela se decidisse por um nome para ele, mas no final o batizou de Horácio.Com uma cesta na mão e Horácio firmemente preso na ponta da guia, Elfrida fechou a porta da frente do chalé ao sair, desceu o atalho estreito até o portão e chegou à calçada, caminhando em direção ao correio e ao armazém.Era uma tarde cinza e nublada no meio de outubro, sem nada de muito especial a seu favor. As últimas folhas do outono caíam das árvores, o vento soprava inoportuno e frio demais até mesmo para o jardineiro mais devotado trabalhar ao ar livre, a rua estava deserta e as crianças ainda nas escolas. Acima das cabeças, um céu carregado de nuvens que se moviam sem parar, sem clarear o céu. Ela caminhava depressa, Horácio trotando sem muita convicção a seus pés, sabendo que era o exercício do dia e que não havia outra alternativa senão fazer o melhor possível.A cidade era Dibton, em Hampshire, e Elfrida viera morar aqui dezoito meses atrás, deixando Londres para sempre e construindo uma vida nova para si mesma. No começo se sentiu meio solitária, mas agora não se via morando em outro lugar. De vez em quando velhos amigos dos tempos do teatro faziam a viagem intrépida da cidade ao campo e se hospedavam com ela, dormindo no sofá cheio de grumos no quartinho dos fundos que ela chamava de ateliê, onde mantinha a máquina de costura e ganhava um dinheirinho extra fazendo almofadas complicadas e belas para uma loja de decoração da Rua Sloane.Quando esses amigos partiam, querendo se certificar de que tudo ficaria bem - "Você está bem, não está, Elfrida? Sem arrependimento? Não quer voltar para Londres? Está feliz?" -, ela conseguia aliviar a ansiedade deles: "Claro que estou. Este é o meu cantinho geriátrico. É aqui que vou passar o crepúsculo de meus anos."Assim, havia agora uma familiaridade confortável em tudo aquilo. Ela sabia quem morava em cada casa, em cada chalé. As pessoas a chamavam pelo nome: "Dia, Elfrida" ou "Dia lindo, Sra. Phipps". Alguns dos moradores eram famílias que trabalhavam em outros locais, o homem da casa saindo de manhã cedo para pegar o trem expresso para Londres e voltando tarde da noite para apanhar o carro na estação e dirigir o curto trecho até a casa. Outros haviam morado ali toda a vida nas casinhas de pedra que outrora pertenceram a seus pais e avós. Outros eram totalmente novos lá, morando nos conjuntos habitacionais que cercavam a cidade, empregados na fábrica de produtos eletrônicos da cidade vizinha. Era tudo muito comum e simples. Justamente, na verdade, do que Elfrida precisava.Caminhando, ela passou pelo bar, recém-reformado e agora chamado A Cocheira Dibton, com placas de ferro fundido e um espaçoso estacionamento. Mais além, passou pela igreja, com seus pés de teixo, um portal e um quadro de avisos pendurado com as notícias da paróquia: um concerto de violão, uma excursão para o grupo de mães e filhos. No adro, um homem acendia uma fogueira, e o ar estava adocicado do cheiro das folhas queimando. Acima, gralhas grasnavam. Um gato descansava em uma das colunas do adro, mas felizmente Horácio não o viu.A rua era curva, e ao final, perto do bangalô inexpressivo onde ficava a nova casa do padre, ela viu a loja da cidade, flâmulas oferecendo sorvete e jornais com as suas primeiras páginas coladas na parede. Dois ou três jovens de bicicleta conversavam perto da porta, e o carteiro, com a caminhonete vermelha, esvaziava a caixa do correio.A janela da loja era gradeada para impedir que vândalos quebrassem o vidro e roubassem os potes de biscoitos e os enfeites de jujuba, componentes decorativos que satisfaziam a idéia de bom gosto da Sra. Jennings. Elfrida pôs a cesta no chão e amarrou a guia de Horácio a uma das barras, obrigando-o a sentar-se resignado. Ele detestava ser deixado na calçada, à mercê de adolescentes mal-educados, mas a Sra. Jennings não gostava de cães em sua loja. Dizia que eles levantavam a pata e que eram sujos.Dentro, a loja estava iluminada, o teto era baixo e fazia muito calor. Geladeiras e freezers ronronavam, e havia um arranjo de luzes moderno na disposição das prateleiras, instalado uns meses antes, uma aquisição e tanto, a Sra. Jennings insistia, mais parecendo um minimercado. Por causa de todas essas barreiras, ficava difícil saber à primeira vista quem estava na loja, e foi somente depois de dobrar a quina (dos Cafés Instantâneos e Chás) que Elfrida viu as costas tão familiares de pé, no caixa, pagando as compras.Oscar Blundell. Elfrida passara da idade em que seu coração pulava de alegria, mas ficava sempre contente de ver Oscar. Ele havia sido quase a primeira pessoa que ela encontrara quando chegou em Dibton, porque fora à igreja um domingo de manhã e, depois do culto, o vigário a havia parado do lado de fora da porta, o cabelo revolto pela brisa fresca de primavera e sua batina branca esvoaçando como roupa lavada no varal, para dizer-lhe palavras de boas-vindas, fazer algumas observações sobre confecção de flores e o Instituto de Mulheres, e então, felizmente, distrair-se. "E aqui está o nosso tecladista. Oscar Blundell. Não é ele quem toca regularmente o órgão, você sabe, mas é um estepe fantástico em horas de necessidade."E Elfrida se virou e viu o homem emergir da escuridão do interior da igreja, caminhando para o sol ao encontro deles. Viu o rosto gentil e simpático, os olhos caídos, o cabelo que provavelmente havia sido claro, mas que agora era todo branco. Ele era da altura de Elfrida, o que era raro. Ela olhava de cima para a maioria dos homens, tendo quase um metro e oitenta e magra como um torno, mas os olhos de Oscar ficavam à altura dos seus, e ela gostou do que viu neles. Porque era domingo, ele vestia um terno de lã e usava uma gravata interessante, e, quando se cumprimentaram, seu aperto de mão tinha uma sensação boa.- Que inteligente - ela disse. - Me refiro a tocar órgão. É o seu hobby?- Não, meu trabalho - ele respondeu, muito sério. - Minha vida. - E então sorriu, o que tirou toda a pompa de suas palavras. - Minha profissão - ele completou.Um ou dois dias depois, Elfrida recebeu um telefonema.- Olá, aqui é Glória Blundell. Você conheceu meu marido no domingo depois da igreja. O organista. Venha jantar conosco na quinta-feira. Você sabe onde moramos. Na Chácara. Uma torre e tijolinhos vermelhos no ponto extremo da cidade.- Que gentileza. Irei com prazer.- Como está se adaptando?- Devagar.- Maravilha. Nos vemos quinta-feira, então. Por volta das sete e meia.- Muito obrigada. - Mas o telefone do outro lado já havia sido desligado. A Sra. Blundell, ao que parecia, não era uma senhora com tempo a desperdiçar.A Chácara era a maior casa de Dibton, a que se chegava através de portões altamente pretensiosos à entrada de um caminho em aclive. Nada disso parecia combinar muito com Oscar Blundell, mas seria interessante ir, conhecer sua esposa e ver seu ambiente. Nunca se conhece bem uma pessoa até vê-la no ambiente de sua própria casa. Depois de ver sua mobília, seus livros e seu modo de vida.Na quinta-feira de manhã ela foi lavar o cabelo e aplicar a tintura mensal. O tom da tinta era oficialmente chamado louro morango, mas às vezes saía mais para laranja que para morango. Essa foi uma das vezes, mas Elfrida tinha coisas mais importantes com que se preocupar. A roupa era um pequeno problema. No final, vestiu uma saia florida até os tornozelos e um cardigã de tricô verde claro. O efeito produzido pela combinação do cabelo, das flores e do cardigã era meio estonteante, mas o aspecto bizarro era um dos melhores modos de Elfrida aumentar sua autoconfiança. Saiu a pé, uma caminhada de dez minutos descendo a rua principal, passando pelos tais portões pretensiosos e subindo o caminho. Dessa vez, ela estava em cima da hora. Como nunca tinha estado na casa, não abriu a porta da frente e entrou, gritando "Ô de casa!", que era seu jeito habitual, mas achou uma campainha e tocou. Ouviu tocar no fundo da casa. Esperou, olhando ao seu redor os jardins bem cuidados, que pareciam ter recebido a poda do ano há pouco. Havia também o cheiro de grama recém-cortada, e o aroma úmido da noite fresca de primavera.Passos. A porta se abriu. Uma senhora simpática de vestido azul e avental florido, que claramente não era a dona da casa.- Boa noite. Sra. Phipps, não? Entre, a Sra. Blundell não demora nada, acabou de subir para ajeitar o cabelo.- Sou a primeira a chegar?- Sim, mas está na hora. Os outros vêm logo. Quer me dar o casaco?- Não, vou ficar com ele, obrigada. - Não seria preciso dar qualquer informação adicional, nem dizer que a blusinha de seda sob o cardigã tinha um buraco na manga.- A sala...Mas foram interrompidas.- Você é Elfrida Phipps... Perdoe não estar aqui para recebê-la... - Olhando para cima, para o patamar decorado, Elfrida viu sua anfitriã descendo a ampla escada do saguão. Era uma mulher grande, alta e bem proporcionada, vestida de calça preta de seda e um casaquinho largo, bordado com motivos chineses. Trazia um copo pela metade com o que parecia ser uísque e soda.- ... me atrasei um pouco e depois houve um telefonema. Olá - ela disse, estendendo a mão. - Glória Blundell. Muito gentil em ter vindo.Seu rosto era corado, tinha olhos muito azuis, e o cabelo, como o de Elfrida, provavelmente tinha sido tingido, mas de um tom mais discreto de louro.- Gentileza sua me convidar.- Entre e venha para perto da lareira. Obrigada, Sra. Muswell, espero que os outros estejam chegando. Por aqui...Elfrida a seguiu até uma sala grande, as paredes forradas de lambris no estilo dos anos trinta e com uma enorme lareira de tijolos vermelhos onde ardia uma tora de lenha. Em frente havia uma grade de proteção forrada de couro, e o aposento era mobiliado com sofás e poltronas, estofados de tecido estampado. As cortinas eram de veludo cor de ameixa trançado de dourado, e o chão, acarpetado e enfeitado com sólidos tapetes persas bem coloridos. Nada parecia velho, decadente ou desbotado, e tudo exalava um ar de calor e conforto masculino alegre.- Você mora aqui há muito tempo? - Elfrida perguntou, tentando não parecer demasiadamente inquisitiva.- Cinco anos. Herdei este lugar de um velho tio. Sempre adorei isto aqui, vinha muito quando criança. - Ela apoiou o copo numa mesinha e foi botar mais lenha no fogo. - Nem te conto o estado em que tudo estava, decadente e cheio de traças, e precisei dar uma boa reforma. Fiz uma cozinha nova também e dois banheiros a mais.- Onde moravam antes?- Ah, em Londres. Eu tinha uma casa nos Jardins de Elm Park. - Ela pegou o copo, tomou um longo gole e o descansou novamente. Sorriu. - Minha vestimenta líquida. Tenho que beber alguma coisa antes das festas. O que você quer? Sherry? Gim tônica? Sim, era um lugar ótimo e maravilhosamente espaçoso. E a igreja de Oscar, São Bidolfo, onde ele era organista, ficava a uns dez minutos de distância. Acho que teríamos ficado por lá para sempre, mas meu tio solteirão partiu desta para melhor, como se diz, e a Chácara ficou para mim. E nós temos uma menina, a Francesca. Está com onze anos agora. Sempre achei que seria melhor criar uma criança no campo. Não sei o que Oscar está fazendo. É ele quem devia estar servindo nossas bebidas. Provavelmente esqueceu tudo e está lendo um livro. E temos outros convidados para conhecer você. Os McGeareys. Ele trabalha na City, em Londres. E Joan e Tommy Mills. Tommy é consultor em nosso hospital em Pedbury. Desculpe, você disse sherry ou gim tônica?Elfrida disse gim tônica e ficou olhando Glória Blundell servir a bebida em uma mesa bem fornida no outro lado da sala. Ela também se serviu, com mais uma dose generosa de Scotch.- Aqui está. Espero que esteja forte bastante. Gosta de gelo? Agora, sente-se, fique à vontade, me conte tudo sobre seu chalezinho.- Bem, é pequenino.Glória riu. - Fica na Alameda Poulton, não é? Foram todos construídos como bangalôs da estrada de ferro. É muito apertadinho?- Para falar a verdade, não. Não tenho muita mobília, e Horácio e eu não tomamos muito espaço. Horácio é meu cachorro. Um vira-lata. Não é bonito.- Tenho dois pequineses que são lindos, mas mordem as visitas, por isso eu os tranco na cozinha com a Sra. Muswell. E o que a trouxe a Dibton?- Vi o chalé anunciado no Sunday Times. Com foto. Parecia uma graça. E não estava caro demais.- Vou ter que ir ver. Desde criança não entro numa daquelas casinhas. Eu costumava visitar a viúva de um porteiro da estação velha. E o que você faz?- Desculpe?- Jardinagem? Joga golfe? Trabalho voluntário?Elfrida se fechou de leve. Sabia reconhecer uma mulher poderosa.- Estou tentando ajeitar o jardim, mas até agora o trabalho tem sido mais tirar o entulho.- Você cavalga?- Nunca montei um cavalo em minha vida.- Bem, essa foi uma resposta direta. Eu montava quando meus filhos eram pequenos, mas já faz muito tempo. Francesca tem um pônei, mas tenho a impressão de que não leva muito jeito.- Você tem filhos também?- Ah, sim, crescidos e casados, os dois.- Mas...- Fui casada antes, veja bem. Oscar é meu segundo marido.- Desculpe. Não percebi.- Nada a desculpar. Meu filho Giles trabalha em Bristol, e Crawford tem um emprego na City. Computadores ou algo assim, totalmente fora de meu alcance. Claro, conhecíamos Oscar já havia alguns anos. São Bidolfo, na Praça Raleigh, era a nossa igreja. Ele tocou divinamente nos funerais de meu marido. Quando nos casamos, todo mundo ficou boquiaberto. "Aquele solteirão", diziam. "Você tem idéia do que está fazendo?"Era tudo maravilhosamente misterioso.- Oscar sempre foi músico? - perguntou Elfrida.- Sempre. Foi educado na escola de coros da Abadia de Westminster e depois foi ensinar música no Colégio Glastonbury. Foi regente do coral e organista lá por muitos anos. E então parou de lecionar, mudou-se para Londres e conseguiu o lugar na São Bidolfo. Acho que teria continuado lá até que o carregassem para fora, mas aí meu tio morreu e o destino decidiu de modo diferente.Elfrida se sentiu um tanto penalizada por Oscar.- Ele não se incomodou de sair de Londres?- Foi mais ou menos como arrancar uma árvore pela raiz. Mas, para o bem de Francesca, ele criou coragem. E aqui ele tem sua sala de música, seus livros e suas partituras, e dá uma ou outra aula particular só para não perder a forma. A música é a sua vida. Ele adora quando aparece uma emergência e pode tocar no culto matinal na igreja de Dibton. E, é claro, está sempre dando uma escapada para treinar lá sozinho. - Atrás de Glória, silenciosamente, a porta do saguão se abriu. Tagarelando, ela não percebeu, mas, dando-se conta de que Elfrida desviara a atenção, ela se virou na cadeira para olhar sobre o ombro.- Ah, até que enfim, meu velho. Estávamos justamente falando de você.De repente, e de uma vez, os outros convidados chegaram, sem tocar a campainha, enchendo a casa com o som de suas vozes. Os Blundells saíram para recebê-los e, por um momento, Elfrida ficou sozinha. Ela pensou como seria bom ir embora e passar a noite refletindo sobre tudo que ouvira, mas obviamente isso não seria viável. Acabava de se envergonhar da idéia quando os donos da casa voltaram, os convidados apareceram na sala e a festa começou.Era uma noite formal, elegante e tradicional, com ótima comida e vinho excelente. Comeram salmão defumado e cordeiro em apresentação impecável, e havia sobremesas, terrinas de creme de leite batido e um queijo Stilton cremoso, de veias azuladas. Quando o vinho do Porto passou, Elfrida percebeu, divertida, que as mulheres não deixaram o aposento, mas ficaram com os homens, e embora agora estivesse bebendo litros de água, que servia a si mesma de uma jarra de vidro jateado, ela sabia que as outras mulheres se deliciavam com o Porto, e Glória, talvez, mais do que todas.Ela se perguntava se Glória, sentada à cabeceira, havia exagerado um pouco no consumo de álcool e se, quando chegasse a hora de se levantarem, ela se poria de pé e cairia de cara no chão. Mas Glória era feita de matéria resistente, e quando a Sra. Muswell pôs a cabeça na porta para dizer que o café estava servido na sala de visitas, ela conduziu o grupo com passo firme da sala de jantar através do saguão.Reuniram-se ao redor da lareira, mas Elfrida, levantando sua xícara de café da bandeja, viu pela janela sem cortina um céu de profundo azul-safira. Embora o dia primaveril tivesse sido incerto, com chuva e algum sol, enquanto jantavam as nuvens haviam-se dispersado, e uma primeira estrela se pendurava no céu sobre o topo de uma faia distante e cheia de brotos verdes. Havia um assento à janela e ela se acomodou nele, aninhando xícara e pires nas mãos e olhando as estrelas.Nesse momento, teve a companhia de Oscar.- Tudo bem com você? - ele perguntou.Ela se virou para olhar para ele. Tinha estado tão ocupado durante o jantar, servindo vinho, retirando pratos, passando as deliciosas sobremesas, que quase não se haviam falado.- Claro. Que noite agradável. E suas flores estão quase se abrindo.- Gosta de jardim?- Não tenho grande experiência. Mas este aqui é particularmente convidativo.- Gostaria de dar uma volta para eu mostrar aí fora? Ainda não está totalmente escuro.Ela passou o olhar pelos outros convivas, jogados nas poltronas perto da lareira e mergulhados em suas conversas.- Sim, gostaria, mas será que não é indelicado?- Nem um pouco. - Ele tomou a xícara de suas mãos e a levou de volta à bandeja. - Elfrida e eu vamos dar uma volta no jardim.- A esta hora? - Glória se surpreendeu. - Está escuro e faz frio.- Não tão escuro. Voltamos em dez minutos.- Claro, mas veja um casaco para a pobre moça… está frio e úmido. Não o deixe segurar você por muito tempo, minha cara...- Pode deixar.Os outros voltaram a conversar sobre o preço indecente da educação particular, enquanto Elfrida e Oscar saíram. Ele fechou a porta com cuidado depois de passar e tirou das costas de uma cadeira um casaco pesado de couro forrado de pêlo de carneiro. - É de Glória... pode pegar emprestado - e o pôs gentilmente sobre os ombros de Elfrida. Então abriu a porta envidraçada da frente e saíram para o ar frio e puro da noite de primavera. Arbustos e cercas-vivas eram assustadores na escuridão, e no chão a grama estava molhada de orvalho.Caminharam. Na extremidade do gramado havia um muro de tijolos, com pilastras ornamentadas, interrompido por uma arcada fechada por imponente portão de ferro fundido. Ele o abriu e entraram num espaçoso jardim murado, dividido com precisão em figuras geométricas de cercas-vivas quadradas. Uma quarta parte era de roseiras, podadas e bem adubadas. Via-se que, quando o verão chegasse, aquilo ali se tornaria um espetáculo. Diante de tal profissionalismo, Elfrida se sentiu desconfortável.- É tudo trabalho seu?- Não. Eu planejo, mas chamo um jardineiro.- Não sou boa de nomes de flores. Nunca tive um jardim de verdade.- Minha mãe sabia todos os nomes. Se alguém lhe perguntasse o nome de uma flor, e ela não tivesse a menor idéia, simplesmente dizia, com autoridade: Inapoticum Forgetanamia. Quase sempre funcionava.- Preciso me lembrar disso.Lado a lado andaram pelo caminho largo de brita. - Espero que você não tenha se sentido isolada no jantar - ele disse. - Acho que somos meio provincianos.- Nem um pouco. Apreciei cada instante. Gosto de ouvir.- É a vida no interior. Ferve com intrigas.- Você sente falta de Londres?- De vez em quando, demais. Os concertos e a ópera. Minha igreja, São Bidolfo.- Você é religioso? - Elfrida perguntou impulsivamente, e se arrependeu. Cedo demais para pergunta tão pessoal.Mas ele continuou imperturbável. - Não sei, mas passei minha vida toda mergulhado em música sacra, nas liturgias e nos magnificats da Igreja Anglicana. E eu acharia desconfortável viver num mundo onde não tivesse a quem agradecer.- Pelas bênçãos?- Exatamente.- Compreendo, embora não seja nem um pouco religiosa. Só fui à igreja naquele domingo porque estava me sentindo meio isolada e precisando da companhia de outras pessoas. Não esperava música tão maravilhosa. E nunca tinha ouvido aquele arranjo do Te Deum antes.- O órgão é novo, foi pago pelas incontáveis festas e bazares.Caminharam em silêncio por um momento. Então, Elfrida falou:- Você acha que isso é uma bênção? Digo, o órgão novo.Ele riu. - Você é como um cachorrinho atrás do osso. Sim, claro que acho.- O que mais?Ele não respondeu logo. Ela pensou na mulher dele, na casa incrivelmente confortável e luxuosa; na sua sala de música, em seus amigos, em sua óbvia segurança financeira. Ela acharia interessante saber como Oscar tinha vindo a se casar com Glória. Teria ele, após anos de vida de solteiro, de pequenos alunos de música, salários parcos e salas de aula empoeiradas, vislumbrado, num futuro sombrio, o vazio de uma velhice solitária e tomado o atalho mais fácil? A poderosa, impositiva viúva, a anfitriã competente, boa amiga, mãe dedicada. Ou talvez teria sido ela quem lhe havia feito a corte, ela quem tomara a decisão? Talvez tivessem simplesmente se apaixonado perdidamente. De qualquer jeito, parecia funcionar.O silêncio caiu entre eles.- Não fale, se preferir não contar - ela disse.- Eu estava apenas tentando decidir como explicar. Casei tarde, e Glória já tinha os meninos de seu casamento anterior. Por algum motivo nunca me ocorreu que eu deveria ter um filho meu. Quando Francesca nasceu, fiquei maravilhado, não apenas porque ela estava lá, um pequenino ser humano, mas porque era tão linda. E íntima. Como se eu já a conhecesse desde sempre. Um milagre. Agora está com onze anos e ainda me espanto por ter tido tanta sorte.- Ela está aqui, na casa?- Não, num internato semanal. Amanhã à noite vou buscá-la para passar o fim de semana.- Gostaria de conhecê-la.- Sem dúvida. Penso, com prazer, que você ficará encantada com ela. Quando Glória herdou esta coisa, chutei a sombra por não querer sair de Londres. Mas por Francesca me deixei levar e concordei. Aqui ela tem espaço e liberdade. Árvores, o cheiro da grama. Espaço para crescer. Espaço para os coelhos e porquinhos-da-índia e o pônei.- Para mim - disse Elfrida -, o melhor é o canto dos pássaros de manhã e o céu aberto.- Você também, penso eu, fugiu de Londres?- Sim. Estava na hora.- Uma separação?- De uma certa forma. Vivi lá toda a minha vida. Desde que saí da escola e de casa. Pertenci à Academia Real de Arte Dramática. Me apresentei no palco, sabe? Para desagrado de minha família. Mas eu não ligava para a reprovação. Aliás, nunca liguei, realmente.- Uma atriz. Eu devia ter percebido.- E cantora também. E dançarina. Revistas e musicais americanos. Eu era a que ficava no fundo, nos grupos de dança, porque sempre fui alta demais. E então os anos de shows quinzenais e pequenos papéis na televisão. Nada muito famoso.- Você ainda trabalha?- Deus do céu, não, desisti há anos. Casei com um ator, o que foi o pior erro por todos os motivos. E então ele foi para a América e nunca mais foi visto, e eu fiquei no meu cantinho fazendo qualquer coisa que aparecia e depois me casei novamente. Mas também não ajudou em nada. Acho que não soube escolher muito bem.- O número dois era ator também? - Pela voz ele parecia estar se divertindo, que era exatamente como Elfrida queria que fosse. Ela raramente falava de seus maridos, e a única forma de tornar os desastres suportáveis era rir deles. - Não, era homem de negócios. Piso de vinil extremamente caro. Você pensaria que eu teria sido maravilhosamente segura e feliz, mas ele tinha aquela desagradável convicção vitoriana de que se um homem alimenta e sustenta sua mulher com uma mesadinha para as despesas da casa, então já cumpriu sua parte da barganha marital.- Bem - disse Oscar -, e por que não? Uma tradição antiga, secular. Apenas antigamente se chamava escravidão.- Que bom que você entende. Fazer sessenta anos foi um dos melhores dias da minha vida, porque recebi meu carnê de aposentadoria e sabia que podia entrar no correio mais próximo e retirar dinheiro, meu pagamento na mão, sem ter que fazer nada. Nunca em minha vida recebi qualquer coisa sem ter que pagar. É uma coisa inteiramente nova para mim.- Você teve filhos?- Não.- Você ainda não explicou por que se mudou para esta cidadezinha.- Uma necessidade de mudança.- Um passo e tanto.Já estava bem escuro agora. Virando-se, Elfrida olhou na direção da casa e viu, pelo rendado do portão de ferro, o brilho das janelas da sala de estar. Alguém havia aberto as cortinas. - Ainda não falei disso. Nunca disse nada a ninguém - ela completou.- Não precisa me dizer.- Talvez eu já tenha falado demais. Devo ter bebido muito vinho no jantar.- Eu não acho.- Havia esse homem. Tão especial, tão amoroso, tão encantador, engraçado e perfeito. Ator também, mas famoso e bem-sucedido e não vou revelar seu nome. Brilhante. Moramos juntos por três anos em sua casinha em Barnes e então ele teve mal de Parkinson e levou mais dois anos para morrer. A casa era dele. Tive que sair. Uma semana depois do enterro vi um anúncio: vende-se um chalé na Alameda Poulton. No Sunday Times. E na semana seguinte eu comprei. Tenho pouco dinheiro, mas não foi muito caro. Trouxe meu querido cachorro Horácio para me fazer companhia, tenho minha pensão e um trabalho fazendo almofadas para um decorador esnobe em Londres. Não é árduo e me ocupa, ao mesmo tempo que me mantém com a cabeça fora d'água. Sempre gostei de costurar e é agradável trabalhar com materiais caros, lindos, e cada projeto é diferente. - Tudo soava muito trivial. - Não sei por que estou lhe contando tudo isso. Não é interessante.- Eu acho fascinante.- Não vejo por quê. Mas você é muito gentil. - Estava escuro demais agora para ver o rosto dele ou ler a expressão em seus olhos caídos. - Acho que talvez devêssemos voltar para dentro.- Claro.- Amo seu jardim. Obrigada. Uma hora dessas quero vê-lo à luz do dia.Aquilo foi quinta-feira. No domingo seguinte choveu, não uma chuva de verão, mas uma chuvinha miúda e persistente batendo na janela do chalé de Elfrida e escurecendo os pequenos cômodos, fazendo-a acender todas as luzes. Depois de pôr Horácio para fora para urinar, ela fez uma xícara de chá e a levou para cama consigo, pretendendo passar a manhã quentinha, no conforto ocioso, lendo os jornais da véspera e lutando para terminar o trabalho de agulha.Mas pouco depois das onze foi interrompida pela campainha da frente, uma sineta presa por uma corrente. O som parecia nada menos que um alarme de incêndio, e o coração de Elfrida quase saiu pela boca. Horácio, deitado atravessado aos pés da cama, se levantou e, sentado, latiu. Isso era tudo que ele sabia fazer para proteger sua dona: sua natureza era covarde e não tinha o hábito de rosnar ou morder intrusos.Perplexa, mas não alarmada, Elfrida saiu da cama, vestiu o roupão, amarrou a faixa na cintura e desceu a escada íngreme e estreita. A escada dava na sala de estar, e a porta da frente abria para o minúsculo jardim da frente. Lá ela encontrou uma menininha de jeans, tênis e um casaco pingando. O casaco não tinha capuz, e a cabeça dela estava tão molhada quanto o pêlo de um cachorro que tivesse acabado de nadar. Era um cabelo ruivo, com duas tranças, e seu rosto era sardento e estava corado do frio de fora.- Sra. Phipps?Usava aparelho nos dentes, uma boca cheia de ferragens.- Sim.- Sou Francesca Blundell. Minha mãe disse que o dia está tão horrível. A senhora não gostaria de almoçar conosco? Temos um monte de carne e um monte de...- Mas eu acabei de jantar lá outro dia.- Ela falou que a senhora diria isso.- É muita gentileza. Como você vê, ainda não me vesti. Nem tinha pensado em almoço.- Ela ia telefonar, mas eu falei que vinha de bicicleta.- De bicicleta?- Deixei na calçada. Tudo bem. - Uma ducha de água de uma goteira na calha quase caiu nela.- Acho que é melhor você entrar antes que se afogue - disse Elfrida. - Muito obrigada. - Rapidamente Francesca aceitou o convite e entrou. Ouvindo vozes e decidindo que seria mais seguro aparecer, Horácio desceu as escadas com dignidade. Elfrida fechou a porta. - Este é Horácio, meu cão.- Que gracinha. Oi. Os pequineses da mamãe sempre latem por horas quando tem visita. Você se importa que eu tire o casaco?- Não, acho que seria uma ótima idéia.Francesca abriu o zíper e o tirou, pendurando-o na pilastra sob o corrimão onde o casaco ficou pingando no chão. E então olhou ao redor. - Sempre achei estas casinhas as coisas mais lindas, mas nunca tinha entrado em uma. - Seus olhos eram grandes e cinzentos, cercados por cílios grossos e claros. - Quando mamãe disse que a senhora morava aqui, queria logo entrar e ver. Por isso vim de bicicleta. Se importa?- Nem um pouco. Está tudo muito amontoado, infelizmente.- Eu acho perfeito.Não estava, é claro. Estava cheio demais e tudo era muito surrado, objetos pessoais que Elfrida trouxera consigo de Londres: o sofá cheio de mossas, a poltroninha vitoriana, o atiçador de fogo de bronze, a escrivaninha quebrada, luminárias, gravuras baratas e livros demais.- Eu ia começar a arrumar e acender a lareira porque já está tão escuro, mas ainda não o fiz. Gostaria de um chá, café ou outra coisa?- Não, obrigada. Acabei de tomar uma coca. Aonde aquela porta vai dar?- Na cozinha. Vou mostrar a você.Ela seguiu na frente, abriu a porta de madeira com o trinco e a escancarou. A cozinha não era maior que a galé de um navio. Lá, um pequeno fogão a gás estava aceso, aquecendo o ambiente; uma cômoda de madeira abarrotada de louça, uma pia de argila sob a janela, e uma mesa de madeira e duas cadeiras ocupavam o resto do espaço. Ao longo da janela, uma porta de estábulo abria para o jardim dos fundos. A metade de cima da porta era formada de pequenos vitrais, e através deles podiam ser vistos o quintal descuidado e uma borda estreita, que era o máximo que Elfrida conseguira em termos de canteiro de flores. Samambaias passavam pelos vãos, e uma madressilva se esparramava pela parede do vizinho.- Não é muito convidativo num dia como este, mas há espaço suficiente para sentar lá fora numa espreguiçadeira nas noites de verão.- Ah, mas eu adorei. - Francesca olhou em redor com olho de dona-de-casa. - Você não tem geladeira. E nem máquina de lavar roupa. E não tem freezer.- Não, não tenho um freezer. Mas tenho uma geladeira e uma máquina de lavar roupa, que ficam no quartinho de fora, num cantinho do quintal. E lavo a louça na pia porque não há espaço para um lava-louça.- Acho que mamãe morreria se tivesse que lavar louça.- Não é muito difícil quando a gente mora sozinha.- Adoro sua louça. Azul e branca. É a minha favorita.- Também adoro. Nada combina, mas compro um pouco quando acho algo num brechó. Tenho tanta agora que quase não cabe aqui.- O que tem lá em cima?- O mesmo. Dois quartos e um banheiro pequeno. A banheira é pequena e penduro as pernas de lado. Um quarto é meu e o outro é o ateliê onde faço minhas costuras. Quando tenho hóspede, ele dorme lá, junto com a máquina de costura e as sobras de tecido e cadernos de pedidos.- Papai me disse que você faz almofadas. Acho tudo isso perfeito para uma pessoa. E um cachorro, é claro. Como uma casa de bonecas.- Você tem uma casa de bonecas?- Sim, mas não brinco mais lá. Tenho animais. Um porquinho-da-índia chamado Feliz, mas que não está muito bem. Acho que vamos ter que chamar o veterinário. Está com umas falhas horríveis no pêlo. E tenho coelhos. E um pônei. - Ela franziu o nariz. - Ele se chama Príncipe, mas é meio sujinho às vezes. Acho melhor eu ir andando agora. Mamãe disse que eu tinha que tratar dele antes do almoço e leva um tempão, principalmente na chuva. Obrigada por me deixar ver sua casa.- O prazer foi meu. Obrigada por trazer o amável convite.- Você vai, não é?- Claro.- Vai andando?- Não, vou de carro por causa da chuva. E, se você me perguntar onde eu guardo o carro, eu digo. Fica na rua.- É aquele Fiesta azul velho?- Aquele mesmo. E velho é elogio. Mas não me incomodo desde que as rodas continuem redondas e o motor dê partida.Francesca sorriu, revelando, sem constrangimento, os dentes cheios de arames. - Vejo você mais tarde, então. - Pegou o casaco, ainda pingando, cobriu a roupa enlameada e soltou as tranças. Elfrida abriu a porta para ela.- Mamãe disse quinze para uma.- Estarei lá, e obrigada por ter vindo.- Virei de novo - Francesca prometeu, e Elfrida ficou olhando-a descer o caminho e atravessar o portão respingando tudo. Um instante depois ela estava na bicicleta e, com um aceno de mão, saiu pedalando furiosamente pelas poças de lama em direção à estrada, desaparecendo da vista.Oscar, Glória e Francesca foram os primeiros amigos de Elfrida. Por intermédio deles, ela conheceu outras pessoas. Não apenas os McGeareys e os Mills, mas os Foubisters, que eram tradicionais ali e responsáveis pela quermesse anual da igreja no verão, no estacionamento de sua casa georgiana caindo aos pedaços. E havia o Comandante Burton-Jones (reformado), um viúvo imensamente ocupado, trabalhando em seu jardim imaculado, diretor da Associação dos Caminhos Públicos e solista no coral da igreja. O Comandante Burton-Jones - meu nome é Bobby - dava festinhas picantes só com bebidas e chamava seu quarto de minha cabine. E havia os Dunns, ele um homem muito poderoso que havia comprado e convertido a velha residência paroquial em uma maravilha de espaço e conforto, incluindo sala de jogos e uma piscina aquecida coberta.Outros, mais humildes, entraram em sua vida um por um, à medida que Elfrida ia tocando suas ocupações diárias: a Sra. Jennings, que gerenciava a lojinha local e o correio; o Sr. Hodgkins, que fazia a ronda uma vez por semana com sua caminhonete de açougueiro, era uma fonte confiável de informações e fofocas, e tinha convicções políticas fortes; Albert Meddows, que atendeu a seu anúncio (um cartão colado na janela da Sra. Jennings) de auxiliar de jardinagem e cuidou, sozinho, da triste bagunça e do calçamento quebrado do jardim atrás da casa de Elfrida. O vigário e sua esposa a convidaram para um jantar formal, durante o qual foi sugerido mais uma vez que ela entrasse para o Instituto das Mulheres. Recusando educadamente - ela não curtia viagens de ônibus e jamais fizera um pote de geléia na vida - concordou em se envolver com a escola primária e terminou produzindo o teatro anual de Natal.Todos eram cordiais e hospitaleiros o suficiente, mas Elfrida descobriu que nenhum deles era interessante ou estimulante como os Blundells. A hospitalidade de Glória não conhecia limites, e raramente uma semana se passava sem que Elfrida fosse convidada à Chácara para uma lauta refeição ou um evento externo, como uma partida de tênis (Elfrida não jogava, mas gostava de olhar) ou um piquenique. Havia outras ocasiões mais elaboradas; uma corrida de cavalos na primavera numa fazenda vizinha, uma visita a um jardim do National Trust,* uma noite no teatro em Chichester. Ela passou o Natal com eles e a noite de Ano-Novo, e quando deu a primeira festa para os novos amigos (depois que Albert Meddows ressuscitou seu jardim, igualou as pedras, aparou a madressilva e pintou o barracão) foi Oscar quem se ofereceu para ser o barman e Glória trouxe infinitas comidinhas de sua espaçosa cozinha.Entretanto, havia limites e reservas. Tinha que haver, ou Elfrida seria absorvida e presa aos Blundells. Desde o começo ela havia percebido em Glória uma grande força - provavelmente, com até mesmo um toque cruel, prepotente, sendo tão determinada em fazer tudo a seu modo - e estava mais que atenta aos perigos de tal situação. Ela havia deixado Londres para levar uma vida independente e sabia que seria fácil demais para uma mulher sozinha e mais ou menos pobre ser sugada (e possivelmente afogada) na centrífuga da energia social de Glória. Assim, de tempos em tempos, Elfrida havia aprendido a dar um tempo, a se isolar, a dar desculpas. Excesso de trabalho, talvez, ou compromisso anterior, a que não podia faltar, com algum amigo imaginário que Glória não conhecia. De vez em quando ela escapava dos limites de Dibton, acomodando Horácio no banco do carona e dirigindo para longe, pelos campos, até outro condado onde ninguém a conhecia e onde ela e Horácio podiam escalar um monte com ovelhas pastando ou continuar o caminho ao longo de algum estuário escuro e achar, no final, um bar cheio de estranhos onde podia comer um sanduíche e tomar café e aproveitar sua preciosa solidão.Em tais ocasiões, distanciada de Dibton e com os sentidos aguçados pela perspectiva, era possível ser analítica sobre seu envolvimento com os Blundells e catalogar seus achados, de modo impessoal e independente, como se fosse uma lista de compras.O primeiro era que ela gostava de Oscar imensamente; talvez até demais. Havia passado bem da idade de amor romântico, mas companhia era outra história. Desde seu primeiro encontro do lado de fora da igreja de Dibton, quando havia gostado dele imediatamente, tinha aprendido a gostar de sua companhia mais e mais. O tempo não havia mudado aquela primeira impressão.Mas o gelo era fino. Elfrida não era uma santarrona nem uma mulher com padrões morais muito altos; de fato, todo o tempo em que morara com seu querido amado amante, ele era marido de outra mulher. Mas Elfrida nunca vira a esposa, e o casamento já estava fazendo água quando os dois se encontraram, e por esse motivo ela nunca sofrera de culpa. Por outro lado, havia um outro cenário, não tão ameno, e que Elfrida já havia testemunhado mais de uma vez: o da mulher sozinha, viúva ou divorciada, ou abandonada, sob os cuidados de uma amiga leal, cuja intenção era apenas para tomar o marido da amiga leal. Uma situação repreensível que ela fortemente reprovava.Mas no caso de Elfrida isso não ia acontecer. E ela sabia que consciência do perigo e bom senso eram seus pontos fortes.Em segundo lugar, havia o fato de que Francesca, aos onze anos, era a filha que, tivesse ela sido mãe, Elfrida gostaria que fosse sua: independente, aberta e totalmente direta, mas com um senso de ridículo que levava Elfrida às gargalhadas, e uma imaginação alimentada pela leitura voraz de livros. Francesca ficava tão absorta neles que qualquer um podia entrar num aposento, ligar a televisão, discutir em voz alta e Francesca nem levantaria os olhos da página. Durante os feriados escolares, ela sempre aparecia na Alameda Poulton, para brincar com Horácio ou observar Elfrida na máquina de costura, ao mesmo tempo em que fazia perguntas intermináveis sobre o passado teatral de Elfrida, que ela evidentemente achava fascinante.Sua relação com o pai era próxima e muito carinhosa, como poucas. Ele podia ser seu avô, mas o prazer mútuo ia além do habitual entre pai e filha. Por trás da porta fechada de sua sala de música podia-se ouvir os dois tocando duetos ao piano, e os erros de dedilhado causavam muita risada, antes que recriminação. Nas noites de inverno ele lia para ela em voz alta, os dois aconchegados em sua enorme poltrona, e o afeto que sentia por ele se manifestava em abraços freqüentes, os bracinhos finos ao redor do pescoço e beijos dados no topo da cabeleira branca. Quanto a Glória, era a mulher de um homem, e muito mais próxima dos filhos crescidos e casados do que da filha concebida mais tarde. Elfrida conheceu esses filhos, Giles e Crawford Bellamy, e suas lindas e bem vestidas esposas, quando apareceram na Chácara para um fim de semana ou para um almoço de domingo, vindos de Londres. Embora não sendo gêmeos, eram estranhamente parecidos, convencionais e teimosos. Elfrida teve a impressão de que nenhum dos dois a aprovava; mas, como também não gostou muito de nenhum dos dois, não se preocupou com isso. Glória os idolatrava, o que era mais importante, e quando chegava a hora de irem embora, as malas de seus carros de luxo abarrotadas de legumes frescos da horta e frutas do pomar de Glória, ela ficava de pé, acenando até desaparecerem, como qualquer mãe sentimental. Ficava muito claro que a seus olhos nenhum dos dois jamais faria algo errado, e Elfrida tinha certeza de que, se Glória não tivesse aprovado as noivas escolhidas, tanto Daphne quanto Arabella teriam sido despachadas.Mas Francesca era outra coisa. Profundamente influenciada por Oscar, ela era independente, seguia seus próprios interesses e achava livros e música muito mais atraentes do que a gincana local do Clube de Pôneis. Mesmo assim, nunca se rebelava nem fazia birra; cuidava de seu pequeno e mal-humorado pônei de boa vontade e o exercitava regularmente, montando-o ao redor do cercado que Glória havia separado para atividades eqüestres e levando-o para longos passeios pelos solitários caminhos perto do estuário. Freqüentemente, nessas ocasiões, Oscar a acompanhava, montado numa bicicleta caindo aos pedaços, lembrança dos dias de professor.Glória os deixava em paz, provavelmente, na opinião de Elfrida, porque Francesca não era importante para ela, nem era tão absorvente ou satisfatória quanto seu próprio estilo de vida ultra-ocupado, suas festas, seu círculo de amigos. Importante, também, era sua posição como mentora social e, às vezes, fazia lembrar Elfrida de um caçador, soprando a corneta para obter atenção e chicoteando seus cães de caça.Somente uma vez Elfrida caiu em desgraça. Foi durante uma noite social na casa dos Foubisters, um jantar muito solene e chique, com velas acesas e a prataria brilhando e um mordomo idoso servindo à mesa. Após o jantar, no salão de estar comprido (e muito frio, pois a noite estava fria), Oscar se pôs ao piano para tocar para eles, e depois de um Estudo de Chopin sugeriu que Elfrida cantasse. Ela ficou constrangida e assustada. Não cantava havia anos, protestou, sua voz estava um horror...Mas o velho Sir Edwin Foubister acrescentou aos que a tentavam convencer: "Por favor", dissera ele. "Sempre gostei de belas canções."Ele a desarmou de tal forma que Elfrida se viu hesitando. Afinal, o que importava se sua voz havia perdido o timbre da juventude, se ela tremia nas notas mais agudas e estava prestes a fazer papel de boba? Naquele momento, viu o rosto de Glória, fechado e ameaçador como um buldogue numa expressão de reprovação e espanto. Percebeu que Glória não queria que ela cantasse. Não a queria se destacando com Oscar e entretendo o pequeno grupo de amigos. Ela não gostava que outros brilhassem, roubassem a atenção, desviassem a conversa de si própria. Foi uma percepção totalmente clara e um tanto chocante, como se Elfrida tivesse apanhado Glória despida.Em outras circunstâncias, Elfrida talvez preferisse a segurança de graciosamente declinar do convite, desculpar-se. Mas nesse dia havia comido bem e bebido um vinho delicioso e, encorajada por isso, viu uma pequena chama de autoconfiança flamejar. Como nunca se permitia ser intimidada, não pretendia começar agora. Então sorriu para o cenho franzido de Glória, virou-se para o outro lado e depositou o sorriso no anfitrião. - Se você quer, eu gostaria, muito... - disse.- Fantástico. - Como uma criança, Sir Edwin batia palmas. - Que presente!E Elfrida se levantou e atravessou o aposento em direção a Oscar, que a esperava. - O que vai cantar?Ela lhe disse. Era uma peça antiga de Rodgers e Hart. - Conhece?- Claro.Um ou dois acordes de introdução. Havia tanto tempo. Ela endireitou os ombros, encheu os pulmões...Olhei uma vez para vocêSua voz havia engrossado, mas ainda segurava o tom, de verdade.E meu coração saltou.E ela se viu imediatamente consumida por uma felicidade inexplicável e se sentiu novamente jovem, de pé ao lado de Oscar e, com ele, enchendo a sala com a música de sua juventude.Glória mal conversou durante o resto da noite, mas ninguém ousou forçá-la a sair de seu humor negro. Enquanto se encantavam e elogiavam Elfrida por sua performance, Glória bebia conhaque. Na hora de irem embora, Sir Edwin os acompanhou até o carrão poderoso de Glória, estacionado no cascalho cuidadosamente varrido com ancinho. Elfrida deu boa-noite e entrou no banco de trás, mas foi Oscar quem se sentou ao volante, e Glória foi forçada a tomar o assento do carona em seu próprio carro.Indo para casa. - Gostou da noite? - Oscar perguntou à esposa.Glória respondeu, curta e grossa: - Estou com dor de cabeça - e mergulhou no silêncio mais uma vez."Não é para menos", Elfrida pensou, mas prudentemente nada falou. E aquela era talvez a verdade mais triste e preocupante. Glória Blundell, teimosa e com estômago de avestruz, bebera demais. Ela nunca ficava bêbada, nunca tinha uma ressaca. Mas bebera demais. E Oscar sabia disso.Oscar. E agora, ali estava ele, na loja da Sra. Jennings numa tarde cinzenta de outubro, pegando o jornal e comprando ração para cães. Vestia calça de veludo, um pulôver de lã e botas pesadas, que pareciam indicar que ele estivera trabalhando no jardim e, lembrando-se de que precisava fazer umas compras, então saíra.A Sra. Jennings olhou para cima. - Tarde, Sra. Phipps.Com a mão cheia de troco, Oscar se virou e a viu. - Elfrida. Boa tarde.- Você deve ter vindo andando. Não vi seu carro - ela falou.- Estacionei na esquina. Só isso, Sra. Jennings.Ele se afastou para deixar espaço para Elfrida e ficou lá, aparentemente sem pressa de sair. - Há dias não a vemos. Como vai?- Ah, sobrevivendo. Meio farta desse tempo.- Horrível, não é? - a Sra. Jennings se meteu. - Frio e úmido ao mesmo tempo, não dá vontade da gente fazer nada. O que tem aí, Sra. Phipps?Elfrida despejou a cesta para a Sra. Jennings ver os preços e passar na registradora. Um pão de fôrma, meia dúzia de ovos, um pouco de bacon e manteiga, duas latas de ração de cachorro e uma revista chamada Casas Belas.* - Ponho na conta?- Se puder, por favor. Deixei a carteira em casa.Oscar viu a revista. - Vai começar a fazer umas melhorias na casa? - perguntou.- Provavelmente não, mas descobri que ler sobre outras pessoas é terapêutico. Acho que porque não vou precisar pegar o balde de tinta. É um pouco como ouvir alguém cortando a grama.A Sra. Jennings achou aquilo engraçado. - Jennings guarda o cortador de grama já em setembro. Detesta cortar a grama - ela comentou. Oscar observou Elfrida encher a cesta. - Dou uma carona para casa, se você quiser - ele disse.- Não me incomodo de caminhar. Trouxe Horácio.- Ele pode vir conosco. Obrigada, Sra. Jennings, adeus.- Adeusinho, Sr. Blundell. Lembranças à esposa.Juntos saíram da loja. Do lado de fora, na calçada, os jovens ainda se ocupavam em nada fazer. Agora uma mocinha esquisita, fumando, havia se unido a eles, cabelos negros como a asa da graúna e uma saia de couro que mal cobria a virilha. Sua presença parece ter galvanizado os jovens em uma pantomima de deboche, insultos e brincadeiras sem sentido. Horácio, preso no meio de tal confusão, tinha um ar infeliz. Elfrida desamarrou sua guia e ele abanou o rabo, aliviado. Os três deram a volta na esquina e desceram a ruela onde Oscar havia deixado o carro. Ela foi para o banco do carona, e Horácio pulou para dentro e se sentou no chão, entre os joelhos da dona, a cabeça em seu colo. Quando Oscar entrou no carro, bateu a porta e ligou a ignição, ela disse: - Nunca esperei encontrar alguém na loja à tarde. As manhãs são mais sociáveis. É quando você atualiza a conversa.- Eu sei. Mas Glória está em Londres e eu esqueci os jornais. - Ele ligou o carro e se encaminhou para a rua principal. As aulas já haviam acabado e as calçadas estavam cheias com a procissão de crianças cansadas e amarfanhadas, arrastando mochilas e indo para casa. O homem no adro da igreja estava com a fogueira acesa, e a fumaça cinzenta subia para o ar parado, frio e úmido.- Quando Glória foi para Londres?- Ontem. Para um encontro ou algo assim. Salvem as crianças, acho eu. Foi de trem. Vou esperá-la no das seis e meia.- Você quer vir comigo e tomar um chá? Ou prefere voltar a seu jardim?- Como você sabe que estive trabalhando no jardim?- As dicas choveram de todos os lados. Intuição feminina. Lama nas botas.Ele riu. - Perfeitamente correto, Sr. Holmes.* Mas eu não recusaria uma xícara de chá. Bônus de jardineiro.Passaram pelo bar. Mais um minuto e teriam alcançado a estrada que dava na subida em direção à linha do trem e nos chalés geminados que formavam a Alameda Poulton. No portão, ele parou e saltaram. Horácio, livre da guia, tomou a dianteira; e Elfrida, segurando a cesta, o seguiu. Abriu a porta.- Você nunca a tranca? - perguntou Oscar, por trás dela.- Não quando se trata de uma saidinha rápida para compras na vila. De qualquer modo, pouco há a roubar. Entre, feche a porta. - Ela foi direto para a cozinha e depositou a cesta na mesa. - Se estiver com vontade de ser gentil, acenda a lareira. Um dia como este merece um calorzinho. - Ela encheu a chaleira na pia e a pôs no fogão. Daí, tirou o casaco, arrumou-o nas costas de uma cadeira e começou a pegar sua louça desconjuntada.- Caneca ou xícara?- Caneca para o jardineiro.- Chá perto da lareira ou ficamos aqui mesmo?- Sempre fico mais feliz com meus joelhos sob a mesa.Sem muita esperança, Elfrida abriu latas de bolo. Duas estavam vazias. A terceira tinha uns restos de pão de gengibre. Ela o pôs na mesa com uma faca. Achou leite na geladeira e esvaziou a caixa numa leiteira de cerâmica amarela. Pegou o açucareiro. Do outro cômodo ouviam-se ruídos de algo quebrando e dos gravetos caindo na lareira. Elfrida foi até a porta e ficou encostada no umbral, observando Oscar. Ele estava pondo, cuidadosamente, dois pedaços de carvão sobre sua pequena pira.Percebendo a presença de Elfrida, ele se esticou e virou a cabeça para sorrir para ela. - Ardendo direitinho. Colocado corretamente, com bastante cuidado. Você vai precisar de madeira para o inverno? Posso lhe mandar um carregamento, se quiser.- Onde eu as guardaria?- Poderíamos guardá-las no jardim da frente, contra o muro.- Seria maravilhoso se você pudesse dispor de um pouco.- Temos mais do que suficiente. - Ele limpou as mãos nas pernas da calça e olhou ao redor. - Sabe, você fez este lugarzinho ficar muito charmoso.- É uma confusão, eu sei. Falta espaço. As coisas que juntamos são um peso, não são? Tornam-se parte da gente, e não sou boa de jogar as coisas fora. E tem algumas que venho carregando comigo há anos, desde meus movimentados dias de palco. Eu era como um caracol com a casa nas costas. Um xale de seda ou um objeto qualquer fazia o ambiente do teatro mais suportável para viver.- Eu gosto muito de seus cãezinhos da raça Staffordshire.- Eles sempre fizeram parte de minha bagagem, mas não são um casal, para falar a verdade.- E o pequeno relógio de viagem.- É viajado também.- Parece bem usado.- Um caco seria a palavra mais adequada. Está comigo há anos, ganhei de um padrinho idoso. Eu... tenho algo que talvez seja valioso, é um pequeno quadro.Estava pendurado de um lado da lareira, e Oscar procurou os óculos e os pôs para melhor examinar a pintura.- Onde você conseguiu isto?- Foi presente de um ator. Estávamos ambos numa reestréia de Hay Fever em Chichester e, perto do final da temporada, ele disse que queria que eu ficasse com o quadro. Um presente de despedida. Ele o comprara num brechó, acho que não pagou muito por ele. Mas estava muito entusiasmado, porque tinha certeza de que era um David Wilkie.- Sir David Wilkie? - Oscar franziu a testa. - Um bem valioso. Então por que ele o deu a você?Mas Elfrida não se deu por achada. - Para me agradecer por ter cerzido suas meias?Ele voltou o olhar para o quadro. Ocupava pouco espaço, 20 x 28 cm, e retratava um casal idoso com roupas do século dezoito sentado a uma mesa onde havia uma Bíblia encadernada em couro. O cenário era sombrio, e as roupas do homem escuras. Mas a mulher vestia um xale amarelo-canário sobre um vestido vermelho e tinha um chapéu branco enfeitado com babados e fitas. - Eu diria que ela estava vestida para festejar alguma coisa, você não?- Sem dúvida. Talvez, Elfrida, você devesse trancar a porta da frente.- Talvez.- Está no seguro?- Ele é o meu seguro. Contra dias chuvosos. Quando me vejo nas ruas com somente um par de sacolas de plástico e Horácio na ponta da guia, somente nessas horas, penso em vendê-lo.- Um abrigo contra o infortúnio. - Oscar sorriu e tirou os óculos. - É isso. É o modo como você vê seus bens que faz daqui um conjunto tão agradável. Tenho certeza de que você não possui nada que não ache belo ou que não seja útil.- William Morris.- E, talvez, uma medida de bom gosto.- Oscar, você diz as coisas mais maravilhosas.Nesse instante, da cozinha veio o apito estridente da chaleira de Elfrida, o que significava que estava fervendo. Ela foi buscá-la. Oscar a seguiu e ficou olhando enquanto ela fazia o chá num bule marrom redondo que depositou sobre a mesa de madeira.- Se você gosta de chá de peão, melhor esperar um pouco. E, se preferir, ponha limão em vez de leite. E aqui temos um pouco de pão de gengibre dormido.- Um banquete. - Oscar puxou uma cadeira e se acomodou, como se estivesse aliviado de tirar o peso das pernas. Ela também se sentou à mesa, em frente dele, e se ocupou em fatiar o pão. - Oscar, estou saindo daqui - ela disse.Ele permaneceu calado, e Elfrida subiu o olhar, percebendo em seu rosto uma expressão de surpresa aterrorizada.- Para sempre? - ele perguntou, amedrontado.- Claro que não é para sempre.O alívio dele era evidente. - Graças a Deus. Que susto você me deu.- Eu nunca deixaria Dibton para sempre. Já disse a você. É aqui que quero passar o crepúsculo da minha vida. Mas está na hora de tirar umas férias.- Está particularmente cansada?- Não, mas o outono sempre me deprime. Uma espécie de limbo entre o verão e o Natal. Um tempo morto. E vou fazer aniversário logo. Sessenta e dois. Mais deprimente ainda. Então, é hora de mudar.- Perfeitamente compreensível. Vai lhe fazer bem. Aonde vai?- Para o extremo de Cornualha. Se você espirrar, corre o risco de cair de um penhasco no Atlântico.- Cornualha? - Ele agora estava perplexo. - Por que Cornualha?- Porque tenho um primo que mora lá. Chama-se Jeffrey Sutton e é exatamente dois anos mais jovem que eu. Sempre fomos amigos. Ele é uma daquelas pessoas agradáveis a quem posso telefonar sem reservas e dizer: "Posso ir e ficar?" E eu sei que ele dirá que sim. E, além disso, parece ficar contente. Então Horácio e eu vamos de carro até lá.Oscar sacudiu a cabeça incrédulo. - Nunca soube que você tinha um primo. Ou qualquer tipo de parente, por assim dizer.- Um fruto de concepção imaculada, você acha?- Longe disso. Mas admito que é uma surpresa.- Não acho surpresa nenhuma. Só porque não fico falando o tempo todo sobre a minha família. - E então Elfrida cedeu. - Mas você não está muito errado. Sou um pouco só. Mas Jeffrey é uma pessoa especial e sempre nos mantemos em contato.- Ele é casado?- Bem, já foi casado duas vezes. A primeira era uma chata. Chamava-se Dodie. Acho que ele se encantou com a beleza e o ar doce e indefeso dela, mas depois descobriu, coitado, que se tinha amarrado a uma mulher inacreditavelmente possessiva. Ela era também preguiçosa e péssima dona-de-casa, e a maior parte do salário batalhado por ele desaparecia pagando cozinheiras, faxineiras e babás na esperança tênue de manter um lar para as duas filhas.- O que aconteceu ao casamento? - Oscar estava visivelmente fascinado.- Ele continuou firme e forte, mas, finalmente quando as meninas estavam crescidas, educadas e trabalhando, ele saiu de casa. Havia uma moça, Serena, bem mais jovem que Jeffrey e extremamente gentil. Ela mexia com jardins e tinha uma floricultura, decorando e fazendo a manutenção de floreiras. Ele a conhecia havia anos. Quando saiu de casa, saiu do emprego também, limpou a poeira de Londres das solas dos sapatos e se mudou, com Serena, para o lugar mais distante possível de Londres. Quando o traumático divórcio acabou, ele se casou com Serena e quase que imediatamente começou uma nova família. Um menino e uma menina. Vivem espartanamente, criando galinhas e acomodando turistas pagantes no verão.- É feliz agora?- Pode-se dizer que sim.- E as filhas? O que aconteceu com elas?- Perdi contato. A mais velha se chamava Nicola. Casou e teve um filho, eu acho. Ela era terrivelmente chata, insatisfeita e vivia reclamando das injustiças da vida. Acho que ela tinha uma inveja horrível de Carrie.- Carrie é a irmã.- Exatamente. E uma gracinha. A personalidade agradável de Jeffrey está toda nela. Uns dez anos atrás, quando precisei fazer uma cirurgia de mulher - e sobre isso, Oscar, não darei detalhes -, ela veio tomar conta de mim. Ficou seis semanas. Eu morava sozinha naquele tempo, num apartamentozinho fuleiro em Putney, mas ela tomou conta de tudo e foi como se a casa pegasse fogo. - Elfrida franziu a testa, fazendo uma aritmética mental. - Ela deve estar com trinta anos agora. Envelhecendo. Como o tempo voa.- Ela se casou?- Acho que não. Como falei, perdi o contato. A última vez que tive notícias, estava trabalhando na Áustria para uma grande companhia de turismo. Sabe, instrutora de esqui e organizando as acomodações de todos os turistas. Ela sempre amou esquiar mais que tudo. Seja como for, acho que ela está feliz. Acho que seu chá já está escuro o suficiente agora. - Ela encheu a caneca - estava no ponto - e cortou uma fatia do pão de gengibre esfarelando. - Assim, veja você, tenho uma família, ainda que não muito próxima. - Ela sorriu para ele. - E você? Hora da verdade. Tem parentes espalhados por aí para contar?Oscar levantou a mão e passou pela cabeça. - Não sei. Acho que sim. Mas, como você, também não tenho idéia de onde estão ou o que estão fazendo.- Fala.- Bem - e ficou pensativo, comendo um pedaço do pão. - Eu tinha uma avó escocesa. Que tal para começar?- Bom começo.- Ela tinha uma casa enorme em Sutherland, e alguma terra, uma fazenda.- Uma latifundiária.- Eu passava os verões com ela, mas ela morreu quando eu tinha dezesseis anos e nunca mais voltei lá.- Como se chamava a casa?- Corrydale.- Era muito grande?- Não. Bastante confortável. Refeições fartas, e barcos de borracha e varas de pescar por todo canto. Cheiros bons, de flores e de cera de abelha, e de perdiz cozinhando.- Ai, que delícia. Dá água na boca. Devia ser o paraíso.- Não chegava a tanto. Mas ela era totalmente simples e extremamente talentosa.- Em quê?- Acho que um talento para viver. E para a música. Era uma excelente pianista. Quando digo excelente, é isso mesmo. Acho que herdei meu pequeno talento dela, e foi ela quem me pôs no caminho da profissão que escolhi. Sempre havia música em Corrydale. Fazia parte da minha vida.- E o que mais?- Como?- O que mais você fazia?- Não me lembro bem. Saía à noite e caçava coelhos. Pescava trutas. Jogava golfe. Minha avó era fominha de golfe e tentava me viciar, mas nunca fui páreo para ela. E quando chegavam outras pessoas jogávamos tênis, e se estava quente, o que era raro, eu ia de bicicleta até a praia e me jogava no Mar do Norte. Em Corrydale, o que você fazia não tinha importância. Tudo era muito relaxante. Bons tempos.- E o que aconteceu?- Minha avó morreu. Era tempo de guerra. Meu tio herdou a casa e foi morar lá.- Ele não convidava você para ir nas férias de verão?- Aqueles dias acabaram. Eu tinha dezesseis anos. Entrei para a música. Fiz provas. Outros interesses, outras pessoas. Uma vida diferente.- Ele ainda mora lá? Digo, seu tio.- Não, mora em Londres; agora, num apartamento majestoso perto do Teatro Albert Hall.- Como se chama?- Hector McLellan.- Fantástico. Usa saia e tem barba ruiva?- Já teve. Está muito velho.- E Corrydale?- Ele passou para o filho, Hughie. Meu primo. Um sujeito sem caráter, cujo único propósito era ficar na boa vida e fazer tudo para impressionar. Encheu Corrydale com seus amigos degenerados, que beberam seu uísque e aprontaram todas, para desespero dos empregados respeitáveis que haviam trabalhado na casa e na propriedade por muitos anos. Foi meio que um escândalo. Então Hughie decidiu que a vida acima da fronteira não era para ele, vendeu tudo e se mandou para Barbados. Até onde tenho notícia, ele ainda está lá, no terceiro casamento e levando a vida que pediu a Deus.Elfrida sentia inveja. - Ah, acho seu primo fascinante.- Não. Fascinante, não. Tediosamente previsível. Antigamente nós nos suportávamos, mas nunca fomos amigos.- Então tudo foi vendido e você nunca mais vai voltar lá?- É o mais provável. - Ele se recostou na cadeira e cruzou os braços. - Na verdade, eu podia voltar. Quando minha avó morreu, ela deixou uma casa para nós dois. Mas está alugada a um casal idoso faz anos. A cada quatro meses recebo uma parte do aluguel, vinda do inventariante. Imagino que Hughie receba o mesmo, embora mal dê para pagar dois drinques.- A casa é grande?- Não muito. Fica no meio de um vilarejo. Eram salas de escritórios, mas a casa foi reformada e transformada em residência.- Que excitante. Eu gostaria de ter uma casa na Escócia.- Meia casa.- Meia casa é melhor que nenhum pão. Você podia levar Francesca lá nas férias.- Nunca pensei nisso, para dizer a verdade. Nunca penso naquele lugar. Acho que um dia Hughie vai me oferecer para comprar minha parte ou sugerir que eu compre a dele. Mas não é algo que me preocupe. E prefiro não precipitar nada. Quanto menos tiver que lidar com Hughie McLellan, melhor.- Acho que você está sendo fraco demais.- Só estou na minha. E quando você viaja?- Quarta-feira que vem.- Por quanto tempo?- Um mês.- Vai nos mandar um cartão-postal?- É claro.- E nos avisa quando voltar?- Imediatamente.- Vamos sentir saudades suas - disse Oscar, e ela sentiu o coração se aquecer.A casa se chamava Bangalô Emblo. A fachada de granito recebia o vento norte do Atlântico, e na lateral as janelas eram pequenas e fundas, com parapeitos largos onde cabiam vasos de gerânios, gravetos e as conchas que Serena amava colecionar. Parte de Emblo havia sido uma fazenda de laticínio e a residência de um criador de gado, mas o fazendeiro se aposentara e depois morrera, e a mecanização dominou o negócio do leite, os salários agrícolas subiram e o fazendeiro pagou as dívidas e vendeu o chalé. Desde então, havia pertencido a três donos distintos, e finalmente havia sido posto à venda exatamente quando Jeffrey tomara a grande decisão de deixar Londres, Dodie e o emprego. Ele viu o anúncio no jornal, entrou no carro e dirigiu a noite toda para conhecer a propriedade antes que outra pessoa tivesse a chance de fazer uma oferta. Encontrou um lugarzinho frio e úmido, precariamente mobiliado para aluguel de temporada, afundado em um jardim mal cuidado e cercado de sicômoros atrofiados curvados nos ângulos comandados pela ação dos ventos constantes. Mas havia a vista dos penhascos e do mar, e do lado sul um pedaço de gramado sombreado onde trepadeiras subiam a parede e um pé de camélia ainda florescia.Telefonou para o gerente do seu banco, conseguiu um empréstimo e comprou o lugar. Quando ele e Serena fizeram a mudança, havia ninhos nas chaminés, papel de parede velho se soltando e um cheiro de mofo e umidade grudado em todos os cômodos. Mas nada disso tinha importância. Acamparam em sacos de dormir e abriram uma garrafa de champanhe. Estavam juntos e em casa.Aquilo fora dez anos atrás. Levaram dois anos para ajeitar tudo, com muito trabalho braçal, sujeira, destruição, dificuldades e uma fila de encanadores, pedreiros, assentadores de azulejos e marmoreiros, que andavam por todo canto com botas enlameadas. Fizeram incontáveis xícaras de chá e mantiveram longas conversas sobre o sentido da vida.De tempos em tempos Jeffrey e Serena se exasperavam com sua lentidão e descompromisso, mas era impossível não serem enganados por aqueles filósofos amadores, que pareciam desconhecer a palavra pressa, satisfeitos em saber que amanhã era outro dia.Finalmente, tudo havia sido feito. Os trabalhadores saíram, deixando atrás de si uma casa pequena de pedra, bem acabada, sólida, com cozinha e sala de estar no térreo, e uma escada rangendo levando ao segundo andar. Nos fundos da cozinha havia o que costumava ser a área de serviço, de piso frio e arejada, e onde capas de chuva e galochas eram empilhadas, e onde Serena guardava a lavadora e o freezer. Havia também uma pia enorme de cerâmica que Jeffrey havia encontrado abandonada na sarjeta. Restaurada, estava sempre em uso para lavar ovos e cachorros sujos de lama e para os baldes de flor.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

"Mãezinha..."


Papai do céu está querendo me tirar mais uma pessoa que amo. Minha tia Ruth, pessoa especial que cuidou de mim quando minha mãe se foi. Talvez, ela seja meu último elo do passado que tanta coisa até hoje não sei e que agora, jamais saberei. Sua dor e sofrimento me causam angústia e tristeza. Fez bem a tantas pessoas e agora quando mais precisa, várias delas literalmente trancam a porta para que ela não incomode. Queria ela aqui mais perto. Queria ela sem dor e com bastante saúde. Criou e ajudou as sobrinhas e teve o dissabor de enterrar seu único filho, fruto de um casamento precoce que na verdade era apenas sua válvula de escape. Nunca mais casou. Se entregou a um único prazer, o de fumar. Nas pontas dos dedos, queimava não só a nicotina, queimava junto suas revoltas, perguntas sem respostas, angústias, saudades...Todas as pessoas deveriam ter o poder de viver enquanto lhes fosse dado a dignidade de ir e vir, falar, ser seu tutor, decidir sobre sua pessoa, porque quando já não temos mais o que oferecer, passamos a importunar e preocupar os demais que sempre estão atarefados demais para uma visita à UTI ou um telefonema.Os espíritas, sempre nos falam sobre aceitar e " deixar" partir a pessoa sem sofrimento causado pelo nosso sofrimento. Não consigo me desligar dela. Só o que peço é que ela não sofra, não sinta dor, que se tiver mesmo que ir, que vá em paz e que volte para me ver assim que puder. Vou chorar. Vou sofrer, mas tenho certeza que não mais do que ela está agora, então, que papai do céu cuide de você " mãezinha", porque de mim você já cuidou e um dia, sei que vou te rever, nem que seja nos meus sonhos...

Vylna Cassoni
10/07/09