domingo, 22 de março de 2009

Realidade


Oração da serenidade dos A.A

Era apenas uma menina.Não me lembro com exatidão a idade que tinha na época, mas me lembro perfeitamente da casa modesta e comum que possuía na entrada apenas uma pequena placa cuja iniciais eu já identificava: A.A.



O real significado dela no entando, só pude compreender após anos de lágrimas e apreensão por viver junto de uma pessoa doente que estava se expondo ali para obter ajuda.



Paredes mal pintadas que guardavam pra si rostos sofridos com marcas profundas na alma por não entender a doença que os acometia tirando sua dignidade, família, bens materiais e amor próprio e a esperança de um futuro.



Cadeiras em círculo, frente a frente, cada um ali falava seu nome, idade e com a voz de vergonha a embasbacar a garganta, admitia que possuía uma doença: Alcoolimo.



Os novatos eram encorajados a se abrirem, tornando público suas angústias, medos e situações de desvarios cometidos ao longo da vida.



O pequeno poster na parede, dava a eles a frase certa a seguir, como se fosse um mantra sagrado, onde dizia:" Só por hoje, não vou beber!"



Agindo dessa forma, também aprendi com essa frase simples e forte, a viver um dia de cada vez.



Estávamos todos doentes.Assim como o alcoolista estava doente, seus familiares também estavam.



A família estava fragilizada, descrente, envergonhada e assima de tudo fragmentada.Para os de fora, era fácil determinar a cura certa, largue dele, é só você querer!Como se vira as costas para alguém doente?



Como se abandona uma pessoa que é incapaz de se cuidar sozinho?Por lei isso não é crime?"Abandono de incapaz".A pessoa incapaz não é somente aquela que é um bebê, ou aquele idoso numa cadeira de rodas ou preso a uma cama, mas aquele também que não tem a capacidade de gerenciar sua própria vida, colocando-a assim em risco iminente.



Descobri que ali meu pai finalmente poderia ter reencontrado senão a melhor solução, mas a mais palpável no momento, pois existiam outros iguais a ele.



Descobri também que havia outras mulheres sofrendo os mesmos maus tratos e situações vexatórias que nós sofríamos lá em casa.Para ajudá-las foram criados o Al-anon, para mulheres de alcoolistas e o Al-latin, para pessoas como eu, filhos de alcoolistas.



Mulheres cansadas pela luta diária e constante em manter unida a família ao seu redor e por tentar dar alguma esperança a essas pequenas almas tão desalentadas por presenciar diuturnamente surras, falta de conversa, falta de carinho, de comida à mesa, de lugar seguro pra dormir, estudar, colo paterno pra se aconchegar, palavras boas de ouvir...



Altas, baixas, novas, idosas, com filhos criados, grávidas, de vários níveis sociais, loiras, pretas, enfim, sem distinção alguma, ali compartilhavam as mesmas angústias e sofrimentos e um fiozinho de luz no fim do túnel surgia a cada término de mais uma reunião.



Aprendia-se a orar, deixando-se de lado credos particulares.Ali, todas oravam pela mesma graça a alcançar: paz!



Ali, a esperança de conseguir mudar o comportamento agressivo do alcoolista era real, e dava a cada um deles não apenas um novo círculo de amigos, mas de amigos abstêmios que tentavam recuperar a vida e a dignidade levadas pelo consumo excessivo e compulsivo do álcool.



No portão, nas despedidas, abraços afetuosos de amizades simples, mas sinceras.



Algumas vezes, pude ver o sorriso largo e bonito de meu pai ao sair de uma dessas reuniões.Já havia até esquecido desse sorriso lindo e me surpreendia quando ele me presenteava com ele.



Infelizmente, não foi o A.A que curou meu pai, mas teve uma profunda participação em nossas vidas, fazendo-nos entender o seu problema, e nos dando de certa forma um alicerce onde pudéssemos nos apoiar para a jornada longa que iríamos enfrentar.
Internações, madrugadas pelas ruas, amigos e familiares
transtornados, abandono geral.
Hoje, me lembrei de um hospital espírita onde meu pai esteve por muitos meses internado e buscando na internet, achei.Ao abrir as fotos do mesmo local onde eu ia quando criança, uma sensação estranha se apoderou de mim, uma mistura de saudade e angústia na verdade.Saudade talvez porque ele ainda estava vivo e angústia, porque vi muitas pessoas lá sendo tratadas e presenciei situações que jamais vou esquecer.


Enfim, a única palavra que me vem à mente nesse momento é obrigada.Obrigada a todos que nos ajudaram naquela época...


Esse foi um dos lugares que conheci.
http://www.bairral.com.br/unidade1.htm











"A bebida surge no universo adolescente muitas vezes antes do primeiro beijo ou do primeiro fio de barba. (Veja, 03/04/96)"











Vylna Cassoni



22/03/09

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